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Ni Hao,

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Por incrível que pareça, a maior mudança em minha vida ao vir para China não foi vir para a China, mas sim parar de trabalhar.

Consegui meu primeiro estágio em 1986 e, a partir dai, nunca mais parei! Em resumo, sou uma mulher que há mais de 20 anos acorda de manhã, se fantasia de executiva, sai para o trabalho e só volta à noite.

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Infelizmente ou felizmente, ao vir para a China, fui “obrigada” a largar esta vida e assumir, pelo menos por uns tempos, o papel de “mulher do Luiz” ou “mãe de família” ou “do lar”, ou como preferirem.

Só que, ao longo desses 10 meses, passei a ter crises de abstinência, complexos de culpa, ansiedade, desorientação… até que meu amigo Hera me conseguiu um trabalho: professora de inglês para chinesinhos de 3 a 10 anos.

Yes! Que experiência maravilhosa, pensei! Trabalhar na China e ainda mais com crianças!

Preparei-me para a aula demo de 15 minutos para criancinhas de 4 anos. Comprei uns bichinhos de madeira, adesivos, balinhas; procurei ideias no Youtube, conversei com o Hera e com uma amiga que mora perto de Harbin, que também é professora, e fui à luta.

A aula foi um sucesso! Durantes os 15 minutos, os chinesinhos brincaram e se divertiram com os bichinhos e eu fui contratada para dar aulas para 3 turmas: criancinhas de 3/4 anos, crianças de 7/8 e pré-adolescentes de 9/10.

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Enquanto estava lendo no contrato as cláusulas que falavam sobre a metodologia de ensino, apresentação prévia do conteúdo das aulas, etc., a professora responsável pela contratação me disse num inglês macarrônico: “Nada disso é importante. O que importa é que você não chegue atrasada nem falte a nenhuma aula.” No contrato havia multas para 5 minutos de atraso, para ausência sem aviso, para pedido de demissão e várias outras penalidades que incidiriam diretamente no meu salário, além de um incentivo financeiro para o professor que apresentasse outro professor.

Comecei a achar aquilo meio, digamos, pouco sério e repressor.

Assinei o contrato, fechei o valor da aula (190 rmb por hora/aula ou R$ 47,00) e fui para casa sabendo que começaria na terça seguinte, mas ainda sem saber o conteúdo das aulas. Fiquei cobrando por email os conteúdos ao longo do sábado, domingo e segunda (sim, o curso funciona todos os dias), e nada de eu saber o que eu iria ter que ensinar.

A ficha começou a cair devagarinho…

Finalmente, na segunda à noite, duas das três professoras me responderam e pude preparar alguns joguinhos.

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As aulas funcionam em 2 partes. Os primeiros 40 minutos são dados pelo professor estrangeiro e os outros 40 minutos pela professora chinesa.

Os nomes das crianças (nomes americanos como Kevin, Jasmine, David e por aí vai) ficam escritos no canto esquerdo do quadro e o professor vai desenhando estrelas por bom comportamento e performance. Ao fim das aulas, a professora conta as estrelas e passa para a cartelinha da criança.
Meritocracia? Adestramento? Sei lá, só sei que as crianças não pareciam ligar muito para as estrelinhas.

Terça-feira, saí de casa super cedo munida de bolas, balas, estrelas de papel, fantoches e qualquer coisa que pudesse me ajudar a dar aulas divertidas e interessantes. ( Meu amigo Hera não precisa de nada disso! Ele descobre o conteúdo 5 minutos antes da aula começar e faz os 40 minutos renderem absurdamente!)

Em minha primeira aula, para criancinhas de 3 a 4 anos, de 17:20h às 18:00h, descobri que esses grandes bebês estão programados para repetir. Repetir. Repetir… gritando! Eu dizia “Hi Cody!” e eles tinham que dizer “Hello, Cody”, mas não funcionava. Se eu dizia Hi eles gritavam Hi, se eu dizia Hello, eles gritavam Hello.

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Além disso, percebi que ia ser muito, mas muito difícil mesmo decorar o nome daquelas coisas fofas, todas parecidinhas, com nomezinhos que não tinham nada a ver com a carinha delas. Para complicar, ainda havia gêmeas na sala (Emily e Ema).

Meus joguinhos acabaram 10 minutos antes do tempo previsto e tive que inventar uma brincadeira de última hora.

Na segunda aula, para crianças de 7 anos, de 18:10 às 18:50h, (aula cujo conteúdo a professora não me passou) aprendi que esses chinesinhos são muito, mas muito mal educados. O perfil básico é o seguinte: filhos únicos (havia 8 meninos e 2 meninas na turma), de pais ricos (que podem estudar em escolinhas particulares) e criados pelos avós que fazem parte do núcleo familiar. Ou seja, crianças altamente mimadas.

Assim que cheguei, o Hank (os pais devem ter assistido a Forrest Gump) parou na minha frente, fez uma careta e começou a rebolar desdenhando da nova professora. Se fosse o Dudu, já tinha levado logo um safanão! Pensei como os outros professores faziam em uma situação destas e percebi que, exceto eu e o Hera, os outros professores eram africanos, negões (pelo amor de Deus, sem qualquer preconceito!) e fortões.

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Neste momento, a ficha que vinha caindo devagarinho, deu uma grande deslizada. Eu era mulher e pequeninha como todas as professoras chinesas. Esses pestinhas não vão me respeitar nunca!

A aula foi uma zona! Eu não tinha tido acesso ao conteúdo e tive que improvisar joguinhos os quais as crianças faziam questão de melar! Tem que jogar a bolinha e acertar a “doll”! O primeiro jogava, errava, a bola caía no chão, o Hank corria e pegava, um outro vinha e pegava a bola da mão dele, um terceiro entrava na disputava e eu ficava tentado apartar a briga e ameaçando apagar as estrelinhas dos nomes deles.

Lá pelas tantas, peguei um pelo colarinho da blusa e coloquei sentado na carteira. Caraca, esses pestinhas conseguiram me tirar do sério! Vou ser presa por agressão física!

Finalmente, chegou a hora da última aula para crianças de 9 anos, de 19:00h às 19:40h. Eram 3 meninos e 2 meninas unidíssimos que não olhavam para minha cara. Ficavam desenhando e conversando em chinês entre eles.

Havia um aluno novo, o Kevin, que ficou na dele e não quis jogar os joguinhos que eu havia preparado. Com esta turminha, aprendi que é impossível para uma criança que passou o dia inteiro na escola (de 8:00 às 17:00) ter fôlego para encarar mais uma aula de inglês. Lembrando que depois que eu terminasse minha parte, eles ainda ficariam com a outra professora até às 20:30! Como conquistar, seduzir, empolgar crianças tão cansadas? Fora a parte em que eles rasgaram e jogaram no chão os envelopinhos coloridos que fiz para eles, a aula foi… chata.

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Quando cheguei em casa depois, do que me pareceu 10 horas de escritório, imensamente desapontada, duvidando do meu carisma e competência, Marcos e Dudu ameaçaram começar uma discussão. Já fui logo avisando: meu estoque de paciência está deficitário; o primeiro que abrir a boca vai…. enfim, logo no primeiro dia, minha vida profissional já começava a interferir em minha vida particular.

Depois dessa terça, dei aulas no sábado seguinte, com a presença dos pais (eu mal tinha começado e já estava encarando uma “open class”!) que foram um pouco melhores.
O Kevin, da turminha de 9 anos, não veio.

Na terça seguinte, sabendo o conteúdo de 2 das 3 aulas (qual a p. da dificuldade de me dizer com antecedência o que eu tenho que ensinar?) fui à labuta, depois de ter esperado o ônibus durante meia hora, o que me fez sair correndo com um computador nas costas e minha bolsa cheia de tralha para não chegar atrasada e ser descontada (lembram do contrato?).

Na última aula para as crianças de 9 anos, o Kevin reapareceu. Sentou bem longe de todo mundo e se recusou a participar do jogo inicial. Na hora de mostrar uns filminhos no meu computador (vocês estão de prova que eu estava me empenhando para conquistar a criançada cansada!), o Kevin sentou longe de todo mundo e de costas para a tela.

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Lá pelas tantas, a avó do Kevin entra na sala, vê aquela cena (o netinho alijado, excluído, segregado do grupo) e começa a me pagar o maior esporro! Não bastasse, ficou me empurrando para me forçar a olhar para ela. A professora chinesa tentou interferir, mas ela não parava de gritar. Quando minha paciência acabou, levantei da cadeirinha em que estava sentada, encarei a vovó e mandei-a parar de gritar comigo. A professora quase enfartou! Pediu pelo amor de Deus para eu não fazer nada, ignorá-la e continuar a dar a aula.

O Kevin queria morrer!

Eu continuei a mostrar o vídeo para as crianças por mais 20 minutos, durante os quais a velhinha permaneceu gritando na sala.

Nesta hora, a ficha, finalmente, caiu! Alô, Chris? Aproveita a deixa da vovó e pede demissão!

Minha única reação quando a aula acabou foi chamar o Kevin num canto, dizer que a culpa não era dele e dar-lhe uma barra de chocolate, a qual ele teve muita dificuldade em aceitar.

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No dia seguinte, por email mesmo, disse que não era possível continuar. O Hera pegou meu salário no fim do mês por mim (eles não me aplicaram nenhuma das multas previstas no contrato) e ponto final.

Minha crise de abstinência passou e agora só penso em estudar, viajar, ser esposa do Luiz e mãe de família!

E viva o Hera, meu herói!

Estes vídeos não são da minha escola, mas poderiam ser. É tudo i-gual-zi-nho!

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