Texto publicado originalmente no Caderno G de sábado, 1 de novembro.
Mulheres que nos traem, nos deixam ou nos desprezam são bons assuntos para a literatura desde que Helena de Tróia resolveu fugir com Páris e deixou o Menelau muito bravo. Em A Arte de Produzir Efeito sem Causa, a mulher de Júnior, um homem medíocre na exata acepção da palavra, o trai com o filho mais novo do seu amigo e chefe. Júnior abandona a esposa e o emprego e acaba na casa do pai, criando para si uma nova rotina, composta de cigarros, café, porres no meio da tarde e mentiras sobre um novo emprego.
A Arte de Produzir Efeito sem Causa caminha nesse sentido até que Mutarelli adiciona uma nova referência. Júnior passa a receber pacotes estranhos, de autores desconhecidos. Daí pra frente, o cotidiano tedioso dá lugar a uma procura incessante por uma resposta que não existe. A traição feminina fica em segundo plano e dá lugar a uma discussão auto-referente sobre a linguagem escrita funcionando como um vírus, capaz de enlouquecer o leitor e deteriorar as relações sociais. Júnior, seu pai e a bonita garota que mora com eles no apartamento tornam-se secundários. A ex-mulher e o filho mal aparacem. Os pacotes e seu mistérios tornam-se os personagens principais.
A divisão do livro em dois capítulos bem estruturados e distintos – cotidiano áspero e embrutecido seguido de um mundo fantástico, perigoso e kafkaniano – remete ao longa Durval Discos, de 2002. Lá como cá, uma família qualquer de classe média brasileira embarca em uma espécie de trangressão emocional. Um fator externo gera um novo comportamento: fantástico em Durval Discos, perigoso no livro de Mutarelli.
Além de Kafka, a literatura de William S. Burroughs também permeia todo o livro. Mutarelli usa os livros de Burroughs e o projeto gráfico competente para envolver o leitor em um quebra-cabeça doentio, de deixar Jigsaw, o vilão de Jogos Mortais, com inveja. No fim das contas, dá até para esquecer a traição feminina.
Serviço
A Arte de Produzir Efeito sem Causa, de Lourenço Mutarelli. Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,50.
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