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Trabalho

Promessa não cumprida: onze anos depois da PEC das Domésticas, informalidade aumentou

Informalidade aumentou após 11 anos da PEC das Domésticas
PEC das Domésticas estendeu às trabalhadoras os mesmos direitos de empregados do setor privado. Apesar disso, informalidade na categoria aumentou. (Foto: Pixabay)

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A Emenda Constitucional 72, derivada da proposta que ficou conhecida como PEC das Domésticas, foi promulgada pelo Congresso em abril de 2013. O objetivo declarado era estender para a categoria os direitos que já existiam para os trabalhadores regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O impacto da nova legislação foi o oposto do pretendido: pouco mais de onze anos depois, o número de pessoas com carteira assinada no serviço doméstico diminuiu, e a informalidade aumentou.

Na visão de especialistas consultados pela Gazeta do Povo, a experiência da PEC das Domésticas pode servir de lição num momento em que o país discute outra proposta que busca impor mudanças nas relações de trabalho via Constituição, em vez de estimular alternativas negociadas entre empregadores e empregados: a PEC que busca acabar com a jornada 6x1 e pôr em seu lugar o regime 4x3.

Quando a PEC foi promulgada pelo Congresso Nacional, o Brasil tinha 5,935 milhões de trabalhadores domésticos, dos quais 1,864 milhão (31,4%) tinham carteira assinada, conforme a pesquisa Pnad Contínua, do IBGE. Ou seja, 68,6% eram informais.

Hoje são 5,966 milhões de domésticos, entre eles 1,389 milhão formalizados, de acordo com o dado mais recente, do trimestre encerrado em outubro. A taxa de formalização caiu a 23,3%, a mais baixa da série histórica, iniciada em 2012. Portanto, 76,7% trabalham sem carteira assinada.

No mesmo intervalo de abril de 2023 a outubro de 2024, o número total de trabalhadores ocupados no país aumentou 15%, enquanto o de domésticos subiu só 0,5%. O índice de formalização dos empregados do setor privado também diminuiu no período, mas bem menos: 76,4% tinham carteira assinada há pouco mais de 11 anos, e agora são 73%.

Analistas ouvidos pela Gazeta do Povo avaliam que, apesar de conferir direitos dignos para os trabalhadores domésticos, mulheres em sua ampla maioria, a PEC não considerou o ambiente do mercado e as circunstâncias econômicas e sociais, bem como possíveis impactos da decisão, que acabou trazendo efeitos adversos.

José Pastore, professor de relações do trabalho da Universidade de São Paulo (USP), afirma que isso é o que ocorre quando se aprova uma "lei irrealista": em lugar de proteger, acaba fragilizando a situação do trabalhador, gerando desemprego e informalidade.

“O estrago foi feito. Aqueles que viam as empregadas domésticas como profissionais em extinção estão confirmando a sua previsão. Quem ganhou com isso? Ninguém. É o típico jogo do perde-perde. Perderam as que precisam de trabalho e os que precisam de serviços”, avalia.

Pastore ainda destacou que os impactos almejados pelos políticos naquele momento também podem ter sido menores que os esperados. “Nem sei se os parlamentares ganharam votos, porque o número de empregadores prejudicados foi muito grande, assim como o número das domésticas que perderam empregos estáveis foi enorme”, diz.

Na visão de Hélio Zylberstajn, professor sênior da Faculdade de Economia da USP e coordenador do projeto Salariômetro da Fipe (salarios.org.br), o papel aceita tudo – mas aquilo que não está de acordo com as regras e condições do mercado não se sustenta. Foi o que aconteceu com a PEC das Domésticas, que acabou tendo efeitos contrários aos que se dizia almejar.

PEC das Domésticas se valeu da mesma lógica da CLT de Vargas

O professor Zylberstajn critica a lógica por trás da PEC das Domésticas: “Nós temos que crescer, aumentar a demanda por trabalho para que essas pessoas tenham oportunidades melhores”, afirma. Agir de modo oposto ao que a cartilha econômica prega é uma questão que, na visão de Zylberstajn, vem da época de Getúlio Vargas.

Segundo ele, o governo Vargas optou pela industrialização para “salvar o Brasil”. “E aí o que a gente fez? A gente passou a subsidiar o recurso escasso do Brasil, que é o capital, então a gente passou a ter crédito subsidiado, isenção de impostos, para que houvesse um incentivo à industrialização. Por outro lado, a gente passou a taxar, a encarecer o fator abundante, que é o trabalho”, diz.

Zylberstajn defende que deveria ter sido feito o contrário. “A CLT encareceu o custo do trabalhador. Com isso, a gente subsidiou a industrialização e foi na direção de poupar a mão de obra ao invés de utilizar ao máximo e valorizar de forma real esse recurso. E essas coisas estão se repetindo até hoje”, afirma ele, citando a PEC das Domésticas e a recente proposta de redução da jornada de trabalho de 6x1 (seis dias trabalhados e um de folga) para 4x3 (quatro dias trabalhados e três de descanso).

Dieese culpa crise, reforma trabalhista e pandemia por aumento na informalidade

Em abril de 2023, na ocasião do décimo aniversário da Emenda Constitucional 72, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) publicou o estudo “O trabalho doméstico 10 anos após a PEC das Domésticas”. Naquele momento, o percentual de empregados domésticos formalizados era um pouco superior ao atual, chegando a 26%, diante de 74% de informais, segundo a Pnad.

Mesmo diante da redução expressiva no número de formalizados, a publicação avalia de forma positiva a PEC das Domésticas, em razão dos benefícios concedidos a esses trabalhadores, e a desvincula da redução nos níveis de formalidade no setor.

De acordo com o estudo, foram três as principais razões para o aumento da informalidade entre as domésticas: a “grave crise que se abateu sobre o país a partir de meados de 2014”; a reforma trabalhista; e a crise sanitária da Covid-19 – que teria sido o fator preponderante entre todos eles, em razão da necessidade do “isolamento social”.

“Em outras palavras, o alargamento dos direitos das trabalhadoras domésticas foi acompanhado por uma conjuntura institucional, econômica e sanitária extremamente adversa, que alterou profundamente os fundamentos do mercado de trabalho do país, especialmente o emprego doméstico”, traz o documento.

A própria PEC das Domésticas trouxe alternativas para a informalidade

Zylberstajn afirma que a pandemia, de fato, agravou a situação dos trabalhadores domésticos. Muitas pessoas migraram para o regime de trabalho híbrido, em razão das medidas de isolamento social. Algumas destas famílias se viram responsáveis pelo trabalho de casa e chegaram à conclusão de que não precisavam mais de uma doméstica tantos dias em casa.

“Principalmente porque essa doméstica está custando mais. Então, tudo isso é reflexo desse aumento no custo da empregada doméstica. É meio triste falar isso, porque os direitos que foram estendidos para elas, enfim, são direitos meritórios, mas eles acabaram encarecendo a empregada doméstica. E o mercado é o mercado, né? Ficou mais caro, eu compro menos, pronto”, diz.

O professor ainda destaca a “válvula de escape” que a própria PEC trouxe para facilitar a informalidade no setor: a necessidade de registrar somente o empregado doméstico que trabalhar três dias ou mais na semana.

“Então, basta optar por dois dias por semana e aí não tem que registrar a doméstica. Quer dizer, economiza no número de dias que são pagos e evita-se pagar os extras do registro formal. É claro o que ia resultar dessa regra”, conclui. Famílias que tinham domésticas todos os dias puderam contratar duas ou mais diaristas para que trabalhassem, cada uma, no máximo dois dias na semana, de forma a dispensar a assinatura de carteira de trabalho.

PEC das Domésticas estabeleceu direitos como FGTS e seguro-desemprego

Sancionada em 2 de abril de 2013, a PEC estabeleceu igualdade de direitos trabalhistas entre os empregados domésticos e os demais trabalhadores. No entanto, a PEC só foi regulamentada pela Lei Complementar 150 de 2015.

Dentre os direitos concedidos figuram FGTS, seguro-desemprego, salário-maternidade, auxílio-doença, auxílio-acidente de trabalho, pensão por morte e aposentadoria por invalidez, idade e tempo de contribuição. Além disso, a PEC fixou jornada de oito horas diárias e máximo de 44 semanais, com ao menos um dia de descanso.

José Pastore lembra que, na época das discussões sobre a aprovação da PEC, chegou a questionar os parlamentares que a defendiam sobre as condições díspares entre as domésticas e os trabalhadores da indústria, por exemplo.

O professor destaca que o trabalhador doméstico tinha condições peculiares, com ajustes feitos em condições, muitas vezes, amistosas com seus patrões. E que, ao aprovar a PEC, os parlamentares mudaram essa dinâmica. Além disso, qualquer desvio das regras tornou-se passível de ações trabalhistas, o que teria assustado os empregadores.  

Pastore ainda alega que, diferentemente das empresas, as famílias não têm contador ou departamento jurídico – ou seja, não há como fazer os controles de uma empresa dentro do lar. Ele afirma que a Emenda Constitucional 72 criou exigências formais que "mataram o clima de confiança", além de aumentar expressivamente o custo de contratação e encerramento de contrato.

“Não deu outra. Os empregadores se sentiram inseguros, assustados com o potencial de conflitos trabalhistas e intervenção da Justiça do Trabalho. A maioria, não podendo arcar com os novos encargos sociais e nem dormir sossegado com a ameaça de ação judicial, trocaram a empregada permanente pela diarista intermitente", diz.

"Isso prejudicou as famílias que precisam de atendimento contínuo e pessoalizado, especialmente  para os bebês, crianças pequenas, idosos e doentes”, acrescenta.

Especialistas defendem que mudanças trabalhistas não devem ser feitas por emendas à Constituição

Outro ponto destacado por ambos os professores é a inadequação de uma emenda constitucional para disciplinar questões trabalhistas. Devido ao dinamismo do mercado de trabalho e da complexidade para aprovação de uma PEC, ela deixa de ser um instrumento adequado para esse tipo de regulação.

“Eu sempre discordei de você colocar direitos trabalhistas na Constituição, porque quando você precisa mexer você tem que fazer uma PEC. Imagina mexer na Constituição por causa de jornada de trabalho?”, diz Zylberstajn.

Pastore afirma que a necessária proteção das domésticas “deveria ter sido feita por lei ordinária, realista e ajustada às peculiaridades do ambiente de trabalho, complementada por negociação coletiva”.

“Em suma, os nossos parlamentares precisam avaliar melhor as externalidades das leis que aprovam. Elas não caem no vácuo. Elas se destinam a pessoas que têm a capacidade de reagir e de se defender, podendo prejudicar exatamente os grupos que os legisladores pretenderam proteger”, conclui.

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