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A CVM (Comissão de Valores Mobiliários) vem se esforçando, nos últimos anos, para aumentar o número de investidores no Brasil. O valor total de emissões de valores mobiliários cresceu 10% em 2023, na comparação com 2022, chegando a R$ 632,7 bilhões, e o número de participantes regulados aumentou 7%, totalizando 86.091 pessoas.
Dentre as iniciativas da autarquia, estão o acordo fechado com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), em agosto do ano passado, em um evento onde a CVM deixou claro o desejo de regulamentar o open capital market para viabilizar o acesso ao mercado por mais investidores e ativos alternativos, como os criptoativos e as Sociedades Anônimas de Futebol (SAF).
O possível interesse de equipes de futebol no mercado de capitais, sem dúvida, é de grande relevância para o mercado. Segundo pesquisa do Datafolha de agosto de 2023, apenas 19% dos brasileiros responderam que não torcem para nenhum time. Outro estudo, realizado em 2022 pelo O GLOBO/Ipec, aponta que esse índice é de 24,4%. Como o último censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apresentou que a população nacional é de 203,1 milhões, podemos considerar que temos entre 153,5 milhões e 164,5 milhões de amantes do futebol. E por que não unir o útil ao agradável?
Apesar do alto índice de possíveis novos investidores, a captação de recursos pelos times de futebol no mercado de capitais enfrenta a incontestável falta de organização do setor. Historicamente, muitos clubes operam com pouca transparência e governança corporativa inadequada. Em contradição à regra basilar do mercado de capitais, a ausência de estrutura impede que eles sejam vistos como investimentos seguros e atrativos para investidores.
O aumento das SAF, transformando as equipes em empresas, foi um passo importante para profissionalizar a gestão e indicou uma possível transformação neste cenário atual
Como consequência natural, atualmente, o investimento em equipes de futebol é visto como de alto risco. Os clubes de futebol enfrentam uma série de desafios financeiros, incluindo dívidas elevadas, receitas instáveis e dependência de resultados esportivos. Afinal de contas, os torcedores exigem títulos, e não lucro. A força dessa pressão externa pode ser exemplificada pelo Cuiabá e pelo Red Bull Bragantino, que são empresas já bem estruturadas, mas sequer aparecem na lista das 26 maiores torcidas na pesquisa citada acima do Datafolha, que apenas registra uma porcentagem de 2,3% para "outros" times.
Na contramão da realidade brasileira, uma parcela preponderante de quem atua nos bastidores da elite do futebol europeu (investidores do mercado global) almeja auferir lucro. Muitos clubes europeus são, inclusive, listados em bolsas de valores, o que os obriga a seguir rigorosos padrões de governança. Imaginem, por exemplo, um clube de futebol ter que seguir obrigações e padrões de governança comuns a qualquer companhia de capital aberto. Trazendo para a realidade brasileira, seria como se o saudoso Santos Futebol Clube tivesse que seguir as obrigações regulatórias, incluindo a transparência, que se assemelham às da Petrobras, da Vale e/ou da Ambev.
Ainda, já tivemos algumas iniciativas no mercado de capitais nacional de utilização de fundos de investimento para injeção de capital em clubes, tais como mediante a constituição de Fundos de Investimento em Participações (FIP) e Fundos de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). Ocorre que, no modelo tradicional brasileiro, onde os times são associações sem fins lucrativos, essas estruturas tendem a trazer determinados riscos adicionais aos potenciais investidores, o que acaba por restringir ou mesmo inviabilizar referidas operações.
O aumento das SAF, transformando as equipes em empresas, foi um passo importante para profissionalizar a gestão e indicou uma possível transformação neste cenário atual. Contudo, o exemplo do Cruzeiro Esporte Clube, que constituiu o FIDC Zorro em fevereiro deste ano, escancarou as desconfianças do mercado. Mesmo levantando R$ 3 milhões, foi liquidado antecipadamente, apenas quatro meses depois. Exemplos de sucesso envolvendo futebol atrelados ao mercado de capitais, por enquanto, são observados em sua maioria na Europa, onde o futebol é tratado como um negócio sério e profissional.
O nível de endividamento dos clubes também apresentou uma leve melhora: depois de bater o recorde de R$ 10,44 bilhões em 2022, a dívida dos 31 principais times do país, entre as séries A e B do Campeonato Brasileiro, caiu para R$ 9,53 bilhões em 2023. No entanto, as dívidas tributárias aumentaram 8%, mantendo o crescimento constante desde 2015. Nesse período, ela saltou 64%, o equivalente a um acréscimo de R$ 1,5 bilhão. Atualmente, elas representam R$ 4,1 bilhões, ou seja, 40% do total.
Não à toa, os times de futebol são considerados um dos maiores devedores de impostos. Se nem os entes federados conseguem cobrá-los de forma efetiva, como um credor, no âmbito de operações de mercado de capitais devidas por clubes de futebol, terá confiança de que seus investimentos e interesses gozarão da plena e competente proteção regulatória atualmente vigente no Brasil?
Embora a participação dos clubes de futebol no mercado de capitais possa se consolidar no futuro, o que se espera, levará tempo para que se tornem players importantes nesta área. Uma pena, pois são justamente as operações de mercado de capitais as mais propícias para injeção de capital eficiente e "mais barato", a exemplo do que já ocorre há décadas no mercado privado brasileiro. Mudar a cultura e organização dentro desses times, com práticas de gestão mais profissionais, pregando pela organização, previsibilidade, transparência e governança, será o primeiro passo para que eles se tornem uma opção viável e atrativa aos investidores, levantando recursos com a garantia de uma sustentabilidade financeira no longo prazo.
Por fim, a pergunta que não quer calar: E quem tende a ganhar com isso? Todos: os clubes, com saúde financeira e organizacional; os investidores, com retorno financeiro; e, por fim, mas não menos importante, os torcedores, com os títulos daí decorrentes.
José Roberto Meirelles, mestre em Direito pela University College London (UCL) em Londres, é coordenador da área de Mercado de Capitais e Fundos de Investimento do Escritório Silveiro Advogados.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos