Ela pode ser concebida para descascar, tornear, filetar, desossar ou trinchar; ou idealizada para cortar pães, legumes ou carnes. A lâmina, polida e afiada manualmente, pode ter geometria do tipo hollow ou flat, a depender do corte que se deseja, enquanto a ponta pode ser pontiaguda ou mais rombuda, serrilhada ou de bico curvo. O cabo pode ser de madeira de lei, aço, couro prensado e até mesmo de chifre, e é fundamental que seja não apenas resistente, mas ergonômico de tal forma que a empunhadura seja perfeita; por fim, a guarda, ou virola, que liga a lâmina ao cabo, confere equilíbrio à faca, além de proteger a mão de quem a manuseia.
Facas de produção industrial podem até fazer o mesmo trabalho, mas a satisfação de manusear uma faca artesanal é outra.
O universo da cutelaria artesanal é tão amplo quanto a criatividade do artesão puder permitir e até um leigo entende que aquela faca Tramontina Edição Especial com cabo de policarbonato e lâmina colorida é fichinha perto de um exemplar artesanal. Para ter certeza, basta entrar na oficina de Hilton Padilha de Souza, 78 anos, possivelmente o mais antigo cuteleiro em atividade do Paraná. Ao longo dos últimos 26 anos, quando passou a se dedicar mais exclusivamente à cutelaria, seu Padilha produziu mais modelos do que pode lembrar e é possível encontrar relatos em fóruns on-line especializados de amantes da cutelaria que não puderam resistir aos encantos de suas peças.
Nascido em 1936, em Campo Grande (MS), seu Padilha soube que havia qualquer coisa que lhe atraía nas facas quando, aos 10 anos, enjambrou sua primeira peça a partir da lâmina velha e enferrujada de uma enxada. “Papai ficou contrariado, imagina, uma criança fazendo faca”, lembra. Não adiantou. Cansado de roçar na fazenda da família, aos 13 anos foi para a cidade viver com o padrinho, Avelino, um cuteleiro de mão cheia.
E foi com o tio que aprendeu a forjar e apurou o talento. Desde então, são mais de 60 anos fazendo facas na mão. “O padrinho era um perfeccionista. Ele não aceitava nada pior do que havia ensinado: eu tinha que fazer igual ou melhor”, conta. O esforço resultou no que considera a maior qualidade de um bom cuteleiro: o amplo conhecimento de ferramentaria. “O cuteleiro tem que dominar as ferramentas manuais. Aprender a utilizar todo esse material requer tempo e prática. Transformar uma barra de aço em uma faca de colecionador não é tão simples”, ensina o senhor baixinho, simpático e conversador.
Inspira e forja
A inspiração para a criação dos modelos que fabrica vem de fontes diversas. Padilha busca modelos em revistas especializadas, na internet e até mesmo em filmes. Entre as preferências, estão a Bowie, designação genérica de facas de defesa e caça originárias dos Estados Unidos do século XVIII; a Sorocabana, modelo tipicamente nacional, criado na época dos tropeiros (o legítimo “facão”), e um modelo batizado de Harpia, forjado a partir de um desenho do pintor paranaense Geraldo Leão, também ele um aficionado por cutelaria artesanal.
A maior parte dos modelos assinados por seu Padilha é feita com material importando, o que dificulta um pouco o trabalho uma vez que apenas uma loja em Curitiba fornece o K100, aço sueco de primeira, ou o 5160, especial para cutelaria. As horas dedicadas a cada modelo e a qualidade do acabamento valorizam o produto. Uma faca “Hilton Handmade” não sai por menos de R$ 300, as mais comuns – a média de preço é R$ 700.
“Muitos questionam o valor de uma faca artesanal. Já mandei muita gente ir comprar uma Tramontina. Facas de produção industrial podem até fazer o mesmo trabalho, mas a satisfação de manusear uma faca artesanal é outra”, diz. “É uma profissão que exige muita paciência, tanto no fazer cotidiano quanto no retorno financeiro. Às vezes demora anos até vender um modelo. Muita gente acaba desistindo da cutelaria”, completa, sério e convicto de que o talento que possui merece ser valorizado.