Cullen Schachtschneider, de seis anos de idade, estava no chão, sangrando ao lado do celeiro, preso em uma máquina de mais de duas toneladas que havia feito um corte feio em sua perna esquerda.
Como as crianças de quase dois milhões de fazendas familiares dos Estados Unidos, Cullen cresceu cercado por equipamentos agrícolas, incluindo a carregadeira amarela agora coberta de sangue. Ele a dirigia enquanto seu pai tocava os bezerros. O garoto viu seus irmãos mais velhos dirigirem o veículo movido a diesel, transportando milho e fazendo tarefas para ajudar a manter as terras da família em Wisconsin, quase na fronteira com o Canadá, onde produzem leite. O trabalho faz parte de sua infância.
Porém, em uma noite em outubro, quando seu pai manejava a máquina para alimentar as vacas, Cullen subiu a bordo e seu pé escorregou. A caçamba hidráulica atingiu sua perna esquerda e a cortou do joelho ao tornozelo, arrancando o tecido com a mesma facilidade de alguém que descalça uma luva.
O pai do garoto, Caleb, frenético, saltou da máquina e ligou para o número de emergência. Dois anos antes, um irmão de Cullen, Kholer, de oito anos, conduzia um boi que acabou indo para cima do irmão mais velho, Maric, que foi parar no hospital. Agora, outra criança estava ferida.
Se o negócio familiar fosse o setor médico ou de construção, não haveria chance de que um garoto empunhar um bisturi ou montar um telhado.
No entanto, nesta e em outras fazendas familiares, crianças de cinco anos já dirigem máquinas imensas, fazendo um trabalho profundamente enraizado nas tradições rurais, mas que também contribui para ferir milhares delas todos os anos e, estima-se, matando mais de cem. Pesquisadores dizem que o número verdadeiro poderia ser maior, porque existem poucos padrões que informam e calculam essas ocorrências.
Esses episódios tristes geraram um debate entre grupos de segurança de fazendas e comunidades rurais: as crianças pequenas devem ou não ser autorizadas a executar esse tipo de trabalho arriscado? Após uma série de acidentes terríveis em 2017, discussões intensas surgiram nas redes sociais sobre quando – e se – seria seguro permitir que crianças trabalhem ou brinquem com equipamentos pesados.
Em um momento em que indústrias e alguns moradores rurais dos Estados Unidos pedem que a administração de Donald Trump reverta uma série de regulamentos, o debate sobre as normas de segurança em fazendas familiares levanta questões difíceis sobre o limite da responsabilidade pessoal e quando a supervisão governamental deve começar.
“Vi muitas crianças morrerem”, disse LuAnne Ujazdowski, conselheira na escola primária de Cullen, que tem 60 vacas de corte em sua casa e se considera “rural até o último fio de cabelo”.
Defensores da segurança em fazendas mencionam inúmeros casos de famílias tomadas pela culpa e pelas dívidas, e que impõem a seus filhos anos de ferimentos e recuperação dolorosos: em maio, um garoto de três anos em Royal, Wisconsin, foi esmagado por um trator que estava sendo conduzido por seu irmão de cinco. Um menino de seis anos de idade em Dowagiac, Michigan, foi atropelado e morto em julho quando caiu da caçamba de uma escavadeira. Outro, de 10 anos no Kansas, limpava o mato de uma área quando foi atropelado pelo trator guiado por sua irmã de nove anos de idade.
“Os pais na cidade não teriam permissão de fazer esse tipo de coisa. Você vê uma criança de 4 ou 5 anos dirigindo um trator; ninguém denuncia. Eles dizem: -É assim que se cuida de uma fazenda-”, disse Barbara Lee, diretora do Centro Nacional de Medicina Agrária da Clínica Marshfield, Wisconsin.
Porém, questionar se uma criança deve andar de trator ou brincar no celeiro não é algo facilmente aceito em comunidades rurais. Gerações de crianças nas fazendas acordam antes do amanhecer para alimentar o gado e fazer tarefas que sua família considera um aspecto intocável da vida. É uma maneira de ensiná-las sobre trabalho duro, a responsabilidade e a compreensão da terra que vão assumir algum dia.
Com a queda dos preços do trigo, dos laticínios e de outros produtos, fazendas menores também enfrentam uma pressão financeira intensa, e a família toda batalha pela sobrevivência.
“As crianças ajudam. Elas são nossa mão de obra contratada”, disse a mãe de Cullen, Amanda Smith.
Onde aqueles que lutam pela segurança veem mortes previsíveis e evitáveis, outras famílias veem acidentes trágicos que merecem preces e condolências, não acusações criminais ou mais regulamentação do governo.
“As crianças de fazenda operam máquinas. É parte da vida delas”, escreveu no Facebook um fazendeiro do Wisconsin em um mar de comentários on-line sobre o acidente que matou o menino de três anos de idade.
Na fazenda Schachtschneider, os meninos começaram a aprender cedo: o pai, Caleb, de 36 anos, disse que ensinou os dois mais velhos, Maric e Kholer, levando-os no colo enquanto dirigia o trator ou a carregadeira.
“Essas coisas são como uma extensão da gente. Quando está ali, tem que ensiná-los. Eles precisam saber por que estão lá, caso contrário, teríamos acidentes piores.”
Manejar os equipamentos acabou se tornando algo natural para os garotos mais velhos, disse o pai. Mesmo assim, acidentes acontecem. Há dois anos, quando Kholer feriu Maric com a carregadeira, o garoto passou uma semana no hospital e voltou para casa em uma cadeira de rodas, contou a mãe dos meninos.
Smith, de 34 anos, disse que odiava ver as crianças dirigindo a máquina amarela. Às vezes ela pensa em destruí-la ou vendê-la, mas também defende a ideia de permitir que os garotos trabalhem, caso contrário seria preciso contratar ajuda pela qual a família não pode pagar. Ver seus filhos alimentando bezerros e ordenhando vacas lhe dá orgulho. “É um trabalho que os ensina a cuidar de si mesmos”, disse ela.
“Se não deixarmos que cresçam dessa maneira, o que eles vão ter? O que vão aprender? A desistir?”, indaga ela.
Durante um mês depois do acidente, Schachtschneider ficou com Cullen no Hospital Infantil de Wisconsin, perto de Milwaukee, a cerca de 200 quilômetros da fazenda. A família havia feito seguro de saúde para o garoto em um programa para residentes de baixa renda de Wisconsin, e Smith disse que ainda não sabem quanto o tratamento vai custar.
A ausência dos dois já causa problemas na fazenda. Um professor da escola dos meninos passou por lá para alimentar e ordenhar as vacas, e os parentes também ajudam. Mesmo assim, a produção quinzenal de leite caiu e foi preciso vender três vacas.
“Ficou meio difícil”, disse Schachtschneider.
Quando Cullen voltou para casa, depois de um mês de cirurgia e enxertos de pele, a família era acordada todas as noites com seus gritos; ele chorava quando a mãe não estava por perto. “Ele tem que ir a todos os lugares comigo porque está com medo, e eu tenho que protegê-lo”, disse ela.
Depois de meses de fisioterapia, Cullen voltou a andar, e a dor e a infecção diminuíram. Criativo, o garoto voltou a inventar suas próprias músicas e a fingir que é um touro bravo, e agora se gaba de seu progresso com a equipe de médicos.
Mas a perna, que perdeu camadas de tecido protetor, ficará vulnerável a infecções e lesões durante anos, dizem os fisioterapeutas e enfermeiros de Cullen.
Apesar dos gastos, das operações, dos medicamentos e do sofrimento, ainda havia vacas a alimentar e feno a transportar. E as crianças vão continuar trabalhando.
“Contanto que eu esteja na carregadeira, não me importo. É minha obrigação levar o feno para as vacas”, disse Maric, de nove anos, que sonha em ser um agricultor como o pai quando crescer.
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