No meu primeiro artigo nesta coluna, escrevi sobre as transformações impostas pela era pós-petróleo. Em paralelo, a agricultura mundial também está passando por grandes mudanças, indicando o início de uma nova era, marcada por soluções digitais e tecnológicas e pelas preocupações com a sustentabilidade.
A fome no mundo voltou a crescer após mais de uma década de queda. Segundo a ONU, mais de uma em cada dez pessoas no mundo ainda passam fome, totalizando 815 milhões em 2016. As principais causas são os conflitos e as mudanças climáticas. Mas há, também, uma forte desigualdade na capacidade de produção e de suprimento de alimentos. A consultoria Deloitte aponta para o fato de que a metade das pessoas desnutridas no mundo são justamente os pequenos produtores agrícolas. Até 80% de fornecimento de alimentos na Ásia e na África Subsaariana ainda dependem desses agricultores, que, sem tecnologia e com processos antiquados, têm uma produtividade bastante reduzida.
No século 20, a Revolução Verde na agricultura ajudou a combater a fome, aumentando significativamente a produção agrícola ao redor do mundo com a adoção de tecnologias de melhoramento genético de plantas e de animais, com o uso de fertilizantes sintéticos e de defensivos químicos, além de organismos geneticamente modificados. Contribuíram também com esse aumento da produtividade a mecanização da produção e da armazenagem, a modernização do transporte e a comoditização de vários produtos agropecuários, que possibilitaram a produção em massa e a redução de custos.
Mas a expansão da produção agropecuária veio com um preço alto. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) aponta que a agricultura e a produção de alimentos também foram os maiores causadores das mudanças climáticas e do aumento de consumo de recursos naturais, já que 30% das emissões globais de gases de efeito estufa e 70% de uso de água vêm do agronegócio.
A FAO estima, também, que um terço de toda a comida produzida no mundo ou 1,3 bilhão de toneladas é desperdiçado anualmente. Além desses alimentos não serem usados no combate à fome, sua decomposição na natureza contribui com a emissão de gases efeito estufa em volume maior do que aquele emitido por qualquer país, com exceção dos Estados Unidos e da China.
Revolução agrícola no Brasil
O Brasil é um dos líderes globais na implantação de novas tecnologias na agricultura. Conforme dados da Confederação da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (CNA), no período de 1976 a 2014, a produção brasileira de grãos e fibra cresceu 331%, enquanto a área plantada aumentou somente 31%. O ganho de produtividade por hectare foi impressionante, de 229%. A grande revolução agropecuária no Brasil fez com que o país saísse da posição de importador líquido de alimentos e se tornasse o segundo maior exportador do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, conforme estudos recentes da Embrapa e da NASA, o Brasil é o país que mais protege a vegetação nativa. Sendo o quinto maior país do mundo, a área cultivada responde por apenas 7,6% do território e a área preservada representa 66% da extensão territorial. A maior parte dos países utiliza entre 20% e 30% do seu território com a produção agropecuária. Mesmo os grandes países territoriais têm índices muito maiores de ocupação de terras: enquanto a Rússia usa 9,1% para a produção agropecuária, os Estados Unidos utilizam 18,3%, a China, 17,7%, e a Índia, 60,5%. Os países europeus usam entre 45% e 65% do seu território para a agricultura.
A urbanização acelerada e o crescimento da população fizeram com que os grandes países territoriais não tenham mais para onde expandir a produção agropecuária. A Embrapa estima que, respeitadas as áreas protegidas e os limites de terra e climáticos, o Brasil se sobressai em relação a todos os outros, podendo explorar no futuro mais 115 milhões de terras cultiváveis. A Rússia contribuiria com mais 80 milhões de hectares. Outros países têm estoques bem menores de terras cultiváveis: o Canadá poderia adicionar 21 milhões de hectares; Estados Unidos, 20; Congo, 18; Argentina, 17; Bolívia, 16; Austrália, 11; Angola, 7; e Moçambique, 5.
Grande transformação na agricultura
Como a disponibilidade de terras e de água é cada vez mais limitada, a agricultura mundial precisa passar por uma grande transformação. Essa nova revolução, que virá, principalmente, da biotecnologia, das tecnologias digitais e das soluções inovadoras para evitar desperdícios, possibilitará produzir mais alimentos na mesma terra, usando menos água e poluindo menos o meio ambiente. Só assim, poderemos atender à necessidade de aumentar a produção de alimentos em 60% até 2050, quando a população mundial deve chegar a 9,5 bilhões de pessoas.
Adrian Percy, chefe de Pesquisa e Desenvolvimento da Bayer Crop Science, multinacional alemã e uma das líderes mundiais nas áreas de ciência agrícola e saúde ambiental, define as cinco principais tendências mundiais que estão transformando a agricultura e representam desafios e oportunidades no mercado mundial:
A primeira é a digitalização. Percy acredita que os veículos autônomos devem chegar primeiro nos campos e só depois nas ruas das cidades. Os tratores autônomos, os drones e os robôs, guiados por aparelhos de celular ou tablets, vão permitir a produção agrícola 24 horas por dia, todos os dias da semana, nos dias críticos para a colheita sazonal. A integração de inteligência artificial, de imagens de satélites e de softwares sofisticados para a agricultura de precisão vão melhorar a gestão e a tomada de decisão, bem como ajudar a evitar desperdícios, salvar tempo, economizar recursos e garantir colheitas em condições adversas de clima e de plantio.
A segunda é a mudança demográfica. Segundo Percy, o consumo de proteínas vai continuar crescendo, representando um mercado de US$ 50 bilhões até 2025. Nos países ricos, os compradores e os consumidores finais estão cada vez mais dispostos a pagar mais por alimentos de alta qualidade, seguros, produzidos de forma ambientalmente sustentável e com a sua identidade preservada. As tecnologias agrícolas vão permitir atender esse público, fazendo com que eles se transformem de commodities em alimentos especializados, produzidos localmente, orgânicos e funcionais, atendendo as mais variadas preferências alimentares.
Haverá, por outro lado, uma mudança no perfil de agricultores. Com o envelhecimento de produtores agrícolas e com a dificuldade de sucessão, haverá ingresso de jovens produtores, sem experiência de campo, mas trazendo novas ideias e querendo implementar novas tecnologias.
O foco na saúde de solo representa a terceira tendência e é a “nova fronteira da agricultura”, conforme Percy. Além das tecnologias de preservação de solo já aplicadas hoje, o uso de microbiologia de plantas e de inovações para garantir a fixação e a utilização de nitrogênio reduzirão o uso de fertilizantes sintéticos e de defensivos químicos, diminuindo a emissão de gases do efeito estufa e a poluição das águas.
A inovação no melhoramento genético, que é a quarta tendência, utiliza a variedade genética natural das plantas para desenvolver novas culturas e alimentos, conforme as necessidades dos produtores e dos consumidores. Por exemplo, as modernas tecnologias de silenciamento de determinados genes permitem produzir plantas customizadas, com características desejadas, em tempo rápido e com menor custo. Como as impressoras tridimensionais na indústria, as novas tecnologias de melhoramento genético permitem serem replicadas tanto em grandes quanto em pequenos laboratórios em qualquer parte do mundo, aprimorando e democratizando a pesquisa e criando um novo conhecimento coletivo e as novas e acessíveis soluções na produção agrícola.
A quinta e, provavelmente, a mais revolucionária tendência da agricultura de hoje é a colaboração e a transparência. O esforço individual das empresas não é suficiente para garantir grandes transformações e ganhos de produtividade. A colaboração via parcerias estratégicas, atração de capital de risco, uso de empresas incubadoras e de redes colaborativas (“crowdsourcing”) são essenciais hoje para a desenvolvimento da agricultura e de outros setores econômicos. Há, também, uma crescente necessidade de adoção de políticas públicas modernas para atender tempestivamente as demandas da transformação tecnológica, permitindo mais desenvolvimento e progresso.
David Perry, CEO da Indigo Agriculture, empresa norte-americana de microbiologia, acredita que a microbiologia das plantas e as tecnologias digitais, juntas, têm o potencial de aumentar a produtividade na agricultura em mais de 50% nas próximas duas décadas.
Estão surgindo, também, soluções inovadoras, como as fazendas verticais automatizadas, a produção hidropônica de hortaliças, o cultivo de carnes in vitro e a produção de proteínas animais artificiais. Além de aumentar a produtividade, que é um dos maiores desafios da economia mundial como um todo, essas tecnologias ajudam a tornar a produção agropecuária sustentável.
A disseminação e a democratização de novas tecnologias e a adoção de políticas públicas adequadas são fundamentais para o sucesso da nova agricultura. Essa nova agricultura vai gerar ganhos de produtividade que vão impulsionar a economia mundial e, ao mesmo tempo, ajudar a enfrentar as principais preocupações da sociedade moderna: a pobreza, a fome, a saúde e o meio ambiente.
(*) Tatiana Palermo foi Secretária de Relações Internacionais do Agronegócio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (2015-2016).