A salmonela é uma infecção bacteriana não aparente a olho clínico, que gosta de sujeira e desorganização. Para vencer essa ameaça de infecção nos aviários brasileiros, o segredo está em manter “a casa” sempre limpa e arrumada. Este é o conselho do professor Paulo Lourenço Silva, da Universidade Federal de Uberlândia, doutor em biologia molecular que participou de bate-papos técnicos com avicultores do Sul do País em eventos recentes promovidos pela multinacional Boehringer Ingelheim, de saúde animal.
Em Chapecó, a Expedição Avicultura do Núcleo de Agronegócio da Gazeta do conversou com o estudioso, que alertou: os importadores aumentaram o grau da lupa que procura salmonela nas cargas brasileiras. “Precisamos passar por toda essa turbulência e mostrar que a nossa carne é a melhor carne que existe na face da terra”. Em abril, 20 frigoríficos brasileiros foram desabilitados para exportar para a União Europeia sob acusação de fraude em laudos técnicos sobre a presença de salmonela
Confira a entrevista.
A gripe aviária, que nunca chegou ao Brasil, sempre foi a principal preocupação sanitária na criação de frangos. O que aconteceu que a salmonela tem roubado as atenções ultimamente?
São duas situações completamente diferentes. A gripe aviária é um vírus com alto poder de difusão e rapidamente acomete o homem e os animais, de uma forma muito mais impactante em termos de mortalidade. A salmonela tem características epidemiológicas diferentes. É um problema de saúde pública de impacto muito grande na economia, principalmente no serviço médico, porque hoje representa a principal doença bacteriana de hospitalização, segundo a Organização Mundial de Saúde.
O problema é mais agudo no Brasil ou haveria um excesso de rigor, porque somos os maiores exportadores de carne de frango?
A salmonela é um problema no mundo inteiro, haja vista os relatórios da Europa e dos Estados Unidos. O que vivemos agora talvez seja reflexo dos episódios que ocorreram no Brasil nos últimos anos.
Há quase 20 anos a Europa implantou um programa de redução de patógenos, dentre eles a salmonela, com aplicação de vacinas e medidas mais efetivas de controle. Os Estados Unidos também fizeram isso, um pouco mais tarde. E o Brasil sempre teve um bom programa de redução de patógenos, mesmo porque somos os maiores exportadores de carne de aves do mundo, e exportamos para os mercados mais exigentes, como o Japão e a União Europeia. Outros países não têm essa relação internacional. Nós temos sim uma boa legislação, bons programas de padrão de higiene operacional e controle de patógenos nas indústrias.
Existem mais de 2600 tipos de salmonela, porque três ou quatro tipos preocupam tanto?
Nossa legislação já determina que temos que controlar duas salmonelas paratíficas, que é a enteretitia e a tiphimurium, e outras duas salmonelas específicas das aves, que é a pullorum e a gallinarum. Em termos de legislação, não há o que discutir, temos que controlá-las. No caso das salmonelas pullorum e a gallinarum, é erradicação mesmo, com o sacrifício das aves E nas salmonelas paratíficas temos que ter o controle. Dentro daquilo que a legislação determina, o foco está nestas quatro salmonelas. Quanto às outras, vamos trabalhar para minimizar, para reduzir sua presença nos ambientes de criação. Mas, no produto, realmente trata-se de tolerância zero com a salmonela.
Porque é tão difícil controlar a salmonela?
Salmonela é um problema de cadeia, que começa desde lá de cima, da mãe ou avó matriz e que passa para o frango. Regra geral, a salmonela não causa uma doença clinica nas aves, ela causa uma infecção. E infecção não é sinônimo de doença. Por isso é difícil identificar um problema de salmonela simplesmente a olho clínico; você não vai ver uma situação clinica nas aves. É uma doença inaparente. A ave tem uma infecção por salmonela, carrega a salmonela, e isso vai para o produto se não houver uma intervenção na cadeia.
E onde deve ser feita esta intervenção?
A intervenção é na limpeza, na desinfecção e no tratamento da cama aviária, no controle de roedores, no controle de cascudinhos. É também a lavagem das caixas de frango e das caixas de ovo, no caso da aves reprodutoras. São muitos pontos, por isso a falha de um procedimento pode comprometer toda a linha de produção.
Mas o senhor costuma dizer que é possível fazer um controle de forma simples, prática e barata. Como assim?
Nem tudo o que você precisa controlar exige grandes inversões econômicas. Conta mais a atitude e o comprometimento. Qual é o gasto de fechar um portão? Qual o gasto de deixar uma cerca com buraco para o cachorro entrar? É preciso acreditar que esses pequenos fatores, muito pequenos mesmo, podem ter um impacto muito grande. Cloração da água, por exemplo, todo mundo faz. Mas as pessoas não lavam a caixa d’água, não fazem limpeza da tubulação da agua, não lavam os bebedouros. Consequentemente, a cloração não vai ter efeito algum. E eu estou gastando o cloro. Eu poderia ser muito mais eficiente se fizesse um procedimento correto, não vou ter custo adicional com isso.
Por isso que eu digo que todo o programa de controle, e particularmente o da salmonela, tem que ser simples. É fechar o portão, não deixar árvores frutíferas, nem mato ou entulho perto do galpão. Isso não custa dinheiro, custa apenas atitude e comprometimento.
O senhor disse que, nesse ano, já houve 70 casos reportados de salmonela em carne de frango exportada do Brasil para a União Europeia. O problema aumentou ou é uma lupa que estão colocando sobre os nossos produtos?
Realmente, nesse ano, a partir de janeiro, o grau da lupa foi muito mais elevado. No ano passado, em todo o ano, salvo engano, foram 70 notificações. Neste ano, só até março, já tínhamos 36 notificações. E de lá para cá, pelos relatos que chegam, devemos estar com cerca de 60 a 70 casos. É muito mais do que em qualquer ano anterior, sem sombra de dúvidas.
Os padrões sanitários estão realmente elevados ou escolheram o Brasil como alvo para inspeções mais rígidas?
Os eventos que tivemos no país, desde a Operação Carne Fraca, tiveram uma divulgação infeliz. E isso foi muito ruim para o país. A partir daquele momento, não é que aumentaram as exigências, mas houve uma maior procura, uma maior investigação das cargas que chegavam do Brasil.
A legislação, tanto brasileira quanto internacional, impõe limites na quantidade de salmonela nos produtos. Se houver detecção de salmonela em 25 gramas de produto já é ponto passivo para notificação ou alerta. Dependendo da salmonela, essa carga pode ser completamente eliminada, descartada. Ou pode ser aceita pelo país, que faz um alerta para o Ministério da Agricultura que, a partir disso, vai notificar a empresa exportadora de que seus controles internos não foram eficientes para pegar o que foi detectado lá fora.
E o que está acontecendo mais hoje: alertas ou descartes?
A rejeição com destruição da carga está muito grande. Mesmo porque trazer uma carga dessas de volta não faz sentido. Regra geral, ou é aceita no porto, que é mais difícil, ou é destruída.
Há críticas de que o Brasil ofereceu garantias irreais de apresentar produtos livres de salmonela. Criamos mesmo uma situação que não tínhamos como cumprir?
Quando a gente fala em cumprimento de legislação, a que seguimos é a do Codex Alimentarius. Nós somos signatários do Codex, somos signatários da Organização Internacional de Saúde Animal. Isso faz com que a gente tenha de cumprir todas as exigências desses códigos. O Brasil tem uma legislação muito robusta quanto ao controle de patógenos. Basta ver os graus de exigência e cuidados que existem para alguém entrar na indústria, o serviço veterinário oficial está sempre presente para evitar que determinados problemas possam acontecer.
Possivelmente, o aumento dos casos de salmonela está ligado a uma maior avaliação das cargas. Estamos falando de países que também produzem frango. É preciso levar em consideração que existe também um protecionismo de mercado muito grande, haja vista o que recentemente a China impôs ao Brasil em termos de tarifa. Por baixo desse pano das questões sanitárias tem muito mais uma questão tarifária. Se não fosse assim, não exportaríamos para mais de 160 países do mundo. O mundo inteiro sabe que temos vocação para produzir carne, o mundo inteiro enxerga isso de forma muito clara. Temos o potencial de produzir e exportar. Somos talvez um dos únicos países que tem essa condição de regularidade para atender aos mercados.
Numa comparação, é como uma roupa que foi lavada e ficou com um pontinho preto? As pessoas ficam apontando para aquele ponto, apesar de todo o resto da roupa estar limpa?
É um comparativo muito válido. Temos um parque industrial invejável, com tecnologia de ponta. Os empresários brasileiros tiveram visão de futuro para atender todos os mercados. Hoje atendemos os Emirados Árabes, o Japão e a União Europeia. Outros países produtores não atingem esses mercados com o mesmo potencial do Brasil. Só isso já diz que a nossa roupa está completamente alva, limpa. Mas se um pontinho porventura ficou sujo, tem que lavar outra vez e deixar o pano todo branco. Esse é o nosso papel para ajudar a indústria. Trazer as informações científicas para o corpo técnico aplicar no dia a dia.
O senhor sugere a criação da figura do gestor de salmonela. Como é isso?
Quando vamos fazer o controle de uma doença, temos que estabelecer alguns critérios. São pilares que chamamos dentro da epidemiologia de avaliação de risco. Ou seja, você primeiro tem que identificar qual é o problema, quais são os pontos onde se deve atuar e quais os procedimentos de controle. A partir disso, tem que ter uma checagem de todos esses itens, para saber se estão dentro dos limites estabelecidos.
Qualquer coisa que fuja desse controle, desse limite, você tem que retornar e fazer toda a verificação para saber onde errou e como vai corrigir. Então, o gestor de salmonela é o profissional que tem a visão do todo. Ele tem acesso ao incubatório, à granja de reprodução, ao frango de corte, à fábrica de ração, à indústria. E cuida de todos os checklists de verificação, é a pessoa que vai ver se o plano de ação está sendo realmente realizado e identificar quais são os pontos frágeis desse programa, e fazer as correções.
Se isso ficar em várias mãos, ou seja, se lá na granja de matriz tem uma pessoa e no incubatório tem outra, você não consegue juntar as informações de modo a corrigir a tempo o problema. São controles que exigem intervenção muito rápida para correção. Porque apenas uma falha pode ter um reflexo muito grande, lá na frente.
Ou seja, a casa tem que estar o tempo todo arrumada?
A casa tem que ser limpa todo dia. Ao levantar tem que arrumar sua cama, cumprir todos os procedimentos. Assim é a rotina de uma granja, do sistema de produção. É preciso organização, disciplina e comprometimento. Se tiver um papel no chão, é catar e jogar no lixo.
Parece ser uma questão de mudança cultural...
Perfeitamente, com nossa vocação para produzir proteína de origem animal, somos nós que temos que nos adequar. E isso inclui o galponeiro que está ali no dia a dia, que tem a vivência e sabe dos problemas. O Brasil só vai continuar com todo esse potencial se as empresas tiverem sanidade. Não existe outro caminho, é a sanidade.
E isso é exatamente a disciplina de fazer as tarefas bem feitas, todos os dias. Precisamos no sistema de produção de indivíduos selecionados para executar as normas estabelecidas. Não precisamos de criatividade, mas de disciplina para cumprir o que foi estabelecido por todos. Isso envolve o chão de fábrica, o diretor, o veterinário, o zootecnista, o técnico agrícola. É preciso perguntar: fizemos um programa, será que está funcionando? Se tiver de mudar alguma coisa, vamos sentar outra vez. No final, a gente quer passar por toda essa turbulência e mostrar para o mundo inteiro que a nossa carne é a melhor carne que existe na face da terra.
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