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Pela culatra

Carne barata tem um preço que - às vezes - é amargo até para os mais ricos

Americanos querem carne barata, o que exige baixos salários. Então os abatedouros contratam trabalhadores sem registro. | Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo
Americanos querem carne barata, o que exige baixos salários. Então os abatedouros contratam trabalhadores sem registro. (Foto: Alexandre Mazzo/Gazeta do Povo)

No abatedouro Southern Provision, em Bean Station, no estado norte-americano do Tennessee, uma força-tarefa com membros da alfândega e imigração dos Estados Unidos – com direito a helicópteros, agentes federais armados e bloqueio de rodovias – cercou quase 100 trabalhadores que estavam ali, colocou todos em vans e os levou ao quartel da Guarda Nacional, na região de Morristown, também no Tennessee.

Desesperadas, famílias tentavam descobrir se seus entes haviam sido presos. Grupos religiosos e defensores dos direitos civis se juntaram às manifestações contrárias à separação forçada de mães, pais e filhos.

Teoricamente, a repressão pública aos trabalhadores sem registro, latinos em sua maioria, deveria passar uma mensagem que desestimulasse a imigração ilegal, mas não é assim tão simples, e muitas pessoas acabam prejudicadas no processo. As plantas ficam inativas, ao passo que comunidades se dissolvem entre o caos que acerta em cheio cidades mantidas pelo poder de compra dos trabalhadores.

Por um momento, os empregadores serão mais cuidados. Empregados que conseguiram evitar a deportação migrarão para outros abatedouros, onde os gerentes estarão felizes em contratar pessoas dispostas a realizar um dos trabalhos manuais mais perigosos nos Estados Unidos, em condições deploráveis e que, todos os anos, levam a uma rotatividade de quase 100% no quadro de funcionários.

O ciclo é familiar. Americanos querem carne barata, o que exige baixos salários. Então os abatedouros contratam trabalhadores sem registro. A fiscalização aperta o cerco. Famílias latinas choram. Professores são colocados numa situação insustentável: cuidar das crianças depois das aulas ou manda-las para casa, sabendo que seus pais estão desaparecidos. A comunidade passa por um choque momentâneo em relação ao “custo humano” para a cadeia, enquanto patrões e empregados criam mecanismos mais sofisticados, para evitar serem descobertos, e todo o ciclo começa de novo.

No passado, sindicatos garantiam que os trabalhadores fossem bem pagos e tivessem segurança no trabalho. Então, no começo da década de 1960, frigoríficos desativaram suas antigas plantas urbanas – e sindicalizadas – e se mudaram para distritos rurais, o que foi um duro golpe para as associações. Nos anos 1990, o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) acabou permitindo que milhares de latinos – muitos ilegalmente – entrassem para o quadro dos frigoríficos, ganhando cada vez menos. Os patrões os receberam bem. Empregados sem registro eram mais fáceis de controlar e muito menos propensos à sindicalização do que aqueles nascidos nos EUA. Com isso, o ritmo das linhas de produção aumentou, assim como o número de gente ferida nas plantas. Diferentemente da representatividade dos sindicatos, que caiu junto com os salários e as condições de trabalho.

A reação veio sob a batuta do ex-presidente dos Estados Unidos George W. Bush. Num único dia, em dezembro de 2006, a fiscalização baixou em seis frigoríficos da Swift (até então uma das gigantes do setor e que, um ano depois, foi comprada pelos brasileiros do grupo JBS), em seis estados diferentes. Aproximadamente 1,3 mil trabalhadores foram presos, o equivalente a 10% da força de trabalho da companhia. Eles foram levados a penitenciárias e a maioria foi deportada. A operação continua sendo a maior do tipo em toda a história dos EUA. Autoridades afirmaram que o plano de negócios da Swift teve como alicerce uma força de trabalho ilegal. Estima-se que, à época, um quarto dos empregos da empresa eram ilegais, e a companhia foi obrigada a aumentar os salários em 8% para continuar funcionando.

O governo Bush preferiu fechar o cerco contra os trabalhadores do que punir os empresários. Agora, dez anos depois, o presidente Donald Trump parece ter redescoberto essa cartilha, acreditando provavelmente que as ações surpresa anti-imigração, com grande visibilidade, são efetivas. Em janeiro, agentes federais bateram em dezenas de lojas da 7-Eleven. Em seguida, voltariam suas atenções à agricultura. Eles foram ordenados a quadruplicar as inspeções, prometendo mudar o que havia sido o foco na gestão de Barack Obama, isto é, as auditorias com os patrões, que dobraram entre 2009 e 2013. Essa política se provou insustentável num ambiente favorável aos negócios. A fiscalização nas plantas do Tennessee foi a maior desde a administração de George W. Bush.

Mas as batidas-surpresa resolvem o problema de fato? Apenas temporariamente, se é que o fazem, pois elas não miram na origem da situação: a demanda por carne barata e a mão de obra também barata que ela requer. Paradoxalmente, podem até criar um efeito “ricochete”, atingindo os interesses corporativos.

Alguns meses depois da operação na Swift, oficiais à paisana baixaram no maior frigorífico do mundo, que pertence à Smithfields Foods, em Tar Heel, na Carolina do Norte. Eles prenderam 21 empregados, tirando os latinos da linha de produção sem alarde e dizendo que eles haviam sido chamados pelo departamento de recursos humanos. Silenciosamente, os trabalhadores largaram suas facas, tiraram seus equipamentos de proteção pessoal e se dirigiram ao RH, onde foram algemados e levados para as vans que aguardavam no local. Para não levantar suspeitas, os agentes também chamaram homens negros e brancos para testes de drogas.

Apesar de toda a cena, o assunto se espalha quando “La Migra” – gíria em espanhol para o serviço de imigração – está a caminho. Em Tar Heel, algumas semanas depois da ação, quase metade dos trabalhadores da planta – mais de 2 mil empregados e suas famílias – simplesmente deixaram a região. A perda de pessoal obrigou a Smithfield a aumentar os rendimentos, o que atraiu mais afro-americanos para os postos, que, de longe, são mais propensos a votar pela sindicalização. Em 2008, os empregados, que geralmente começavam ganhando US$ 8 por hora, se filiaram ao sindicato nacional dos trabalhadores na indústria de alimentação e conseguiram um aumento de US$ 1,50 a hora, o maior na história do frigorífico. Foi uma vitória atípica, onde crescem movimentos contrários à sindicalização.

A “batida” no Tennessee pode repetir o “filme” ambientado em Postville, no Iowa, que envolveu cerca de 400 trabalhadores: o som dos helicópteros foi seguido pelo choro. A empresa em questão acabou indo à falência, devastando a economia da região.

Nenhuma denúncia contra a Southern Provision, que processa carne bovina, havia sido feita à época da operação, mas, mesmo assim, os agentes federais estavam investigando a companhia, depois que funcionários do Citizens Bank notaram que a empresa estava sacando grandes quantidades de dinheiro semanalmente, possivelmente para pagar os empregados ao mesmo tempo em que evitava os impostos. Caso houvesse acusações, o resultado seria o já familiar êxodo familiar e o consequente impacto à economia, alterando a comunidade que abriga a planta e as empresas que a abastecem. Os grandes empregadores, frequentemente, recebem multas, deixam a poeira baixar e depois voltam aos negócios normalmente.

É um segredo aberto. Os americanos querem carne barata, os presuntos e assados nos dias de folga, nem que isso, ocasionalmente, termine em esforços anti-imigração, a despeito do sofrimento humano.

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