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sem queimação

Tratadas como lixo, águas-vivas entram na pescaria como alimento e remédio contra o câncer

Captura  de águas-vivas:  animal marinho  será usado  para alimentação e para combater tumores | NADIA SHIRA COHEN/NYT
Captura de águas-vivas:  animal marinho será usado para alimentação e para combater tumores (Foto: NADIA SHIRA COHEN/NYT)

Enquanto um pequeno barco cheio de roupas de mergulho molhadas, equipamentos de laboratório e coolers vazios flutuava no mar turquesa morno, Stefano Piraino olhou para os banhistas na praia e explicou por que nenhum deles se arriscava a entrar na água.

“Eles sabem que as águas-vivas estão aqui”, afirmou Piraino, professor de Zoologia da Universidade de Salento.

Enquanto turistas de toda a Europa procuram a Apulia, no sudoeste da Itália, por causa de suas cidades barrocas caiadas e mares cristalinos, os cardumes de medusas se aglomeram em suas águas.

As mudanças climáticas estão deixando as águas mais quentes por mais tempo, permitindo que essas criaturas criem gerações após gerações de descendentes gelatinosos.

A população de águas-vivas vem aumentando há anos, mas teve um crescimento especial desde 2015 com o alargamento do Canal de Suez, que abriu uma hidrovia aquática no Mediterrâneo para espécies invasoras.

A invasão das medusas atingiu um ponto em que pode haver pouco a fazer além de encontrar uma maneira de conviver com a imensa quantidade delas, dizem cientistas como Piraino.

As águas-vivas ainda são, literalmente, tratadas como lixo. Recentemente, o ramo de pesquisa e inovação da Comissão Europeia considerou sua explosão numérica, junto com os detritos aquáticos e a poluição, como uma forma de lixo que representa “problemas imensos e crescentes nos oceanos, mares e costas”.

A comissão criou fundos para estudiosos que criem métodos inovadores para limpar as águas. Piraino e sua equipe se apresentaram.

Pesca e alimentação: águas-vivas

Convencidos de que as mudanças climáticas e a pesca em excesso vão forçar os italianos a se adaptar a outros intrusos estrangeiros, como aconteceu com o tomate, sua equipe lançou o projeto Go Jelly, que praticamente se resume a uma ideia simples: se você não pode vencê-las, coma-as.

O estudo, que começa oficialmente em janeiro, vai tentar mostrar que a imensa e crescente biomassa de águas-vivas pode ser uma inesgotável gelatina dos mares.

Quanto à pesca em excesso, os mares mais quentes e a poluição podem acabar com os predadores dos oceanos, permitindo que as medusas prosperem - e a reprodução delas é muito fácil.

Elas podem ser hermafroditas que se reproduzem sozinhas, tem o poder de se clonar, são capazes de colocar até 45 mil ovos por dia, de brotar de pólipos e de se dividir em dois. Quando uma usina elétrica no Japão tentou resolver seu problema com as águas-vivas com um moedor, aumentaram seu número exponencialmente.

“Não dá para reduzir a quantidade”, afirmou Piraino, dizendo que talvez só seja possível contê-las.

Para proteger os banhistas de espécies que queimam, Piraino liderou vários estudos sobre as águas-vivas financiados pela União Europeia (“Eu administro o JellyRisk”, disse ele), criou uma campanha global de localização e protegeu praias de espécies venenosas com redes de última geração à prova de medusas.

O problema vai além da Itália. Mais de 30 milhões de euros em receitas do turismo são perdidas por ano ao longo da costa mediterrânea de Israel.

“Imagine uma biomassa do tamanho do maior petroleiro do mundo cruzando uma costa”, disse Piraino.

Em 2013, os surtos de água-viva forçaram o desligamento de uma usina nuclear na Suécia. No Mar da Irlanda, elas acabaram com as pescarias de salmão.

Na Sicília, onde um jovem Piraino teve os primeiros contatos com o que seria o trabalho de sua vida (“Não foi uma situação muito positiva”, contou), elas entopem redes de pesca e colonizam as praias.

Águas-vivas: colágeno e remédio contra câncer

Piraino vem examinando os mistérios dessas criaturas de mais de meio bilhão de anos para descobrir seus possíveis usos. Eles incluem um potencial para combater tumores e também a utilização de espécies cheias de colágeno como fonte de lábios mais voluptuosos.

E também há a comida.

Antonella Leone é pesquisadora no Instituto de Ciências da Produção de Alimentos da Itália e, há dois meses, mulher de Piraino. Em seu casamento no verão, o casal celebrou com um bolo em camadas cheio de medusas de confeitaria.

Uma das líderes do projeto Go Jelly, ela acha que os italianos, com seu zelo por ingredientes de origem local, podem muito bem desenvolver um gosto pelas águas-vivas.

Outros povos já o fizeram. Os japoneses as servem como sashimi em tiras com molho de soja, e os chineses as comem há milênios.

Em 2015, um regulamento da UE simplificou o processo de inscrição para países de fora do bloco que queriam vender alimentos que não são tradicionalmente comidos na Europa - como uma espécie asiática de água-viva - se eles não apresentarem qualquer risco e se forem consumidos com segurança no país estrangeiros há mais de 25 anos.

A lei, que entra em vigor no dia 1º de janeiro de 2018, também remove os impedimentos burocráticos que as pessoas que criam “novos alimentos” locais precisam enfrentar, incluindo aquelas que propõem que se comam as águas-vivas do Mediterrâneo.

Mas o ministro da Saúde italiano diz que, como nenhum estado-membro tem a tradição de comer águas-vivas e como as espécies locais parecem biologicamente distintas de seus primos asiáticos comestíveis, com níveis variados de toxicidade e de células que queimam, é preciso que passem por todos os padrões de pesquisa europeus e pelos testes de controle de segurança antes que as medusas do Mediterrâneo possam aparecer como uma iguaria selvagem em mercados ou nos cardápios dos restaurantes.

Foi por causa dessa pesquisa que Leone colocou seu equipamento de mergulho.

“Veja, é enorme”, disse ela ao encontrar uma espécie, um Rhizostoma pulmo - conhecida como água-viva barril - com uma borda violeta pulsante, flutuando como uma sacola plástica submersa.

Ela mergulhou nas águas infestadas de águas-vivas e voltou com as redes cheias de glóbulos violetas.

Enquanto uma tartaruga, movendo-se como uma sombra na água, chegou para seu lanche escorregadio favorito, Piraino explicou como as mudanças climáticas forçarão as pessoas a seguirem o exemplo da tartaruga ou, mais especificamente, do pescador italiano que um dia lhe contou que gostava de fritar as águas-vivas e adorava fazer um ragu com elas.

No convés, Lorena Basso, outra pesquisadora do clima que tem bolsa para estudar a distribuição sexual das medusas, usava um bisturi e tesouras para separar o guarda-chuva em forma de sino dos tentáculos, que cintilavam ao sol como uma couve-flor transparente e molhada.

“Ela está tirando as gônadas da água-viva”, explicou Piraino antes de chamar a mulher. “Antonella, me arrume uma com as gônadas coloridas.”

De volta à bordo, Leone manteve pacientemente uma medusa sobre um frasco, drenando seu muco que queima, com luvas que pareciam meladas com incontáveis espirros.

“Você gostaria de provar?”, perguntou Piraino.

De volta ao laboratório na cidade barroca de Lecce, Leone colocou um avental e experimentou maneiras de conservar as águas-vivas.

Enquanto se preparava para congelá-las e embalá-las a vácuo, pediu a um colega que tirasse espécies de um barril. Ele colocou a mão lá dentro, mas não pegou nada.

“Que foi, está com medo?”, perguntou ela.

Na manhã seguinte, um restaurante perto da universidade de Lecce se tornou uma cozinha de testes.

Enquanto a medusa descongelada parecia reviver sob a água da torneira, o chef do restaurante perguntou se deveria colocar sal na água fervente. Leone disse que não era necessário. Então ele perguntou como cortar os tentáculos da tampa.

“Como um cogumelo”, respondeu Piraino.

Eles ferveram o primeiro lote por alguns minutos para retirar a água e destruir as células que queimam. O chef, com uma expressão duvidosa e hesitante, cortou a medusa cozida, que agora tinha a aparência de um cérebro em um tom púrpura mais profundo.

Outro cozinheiro as cortou em fatias, envolveu-as em uma massa de farinha e depois colocou na fritadeira. Depois de fritas, elas se libertaram de suas carcaças parecendo insolentes línguas roxas.

Piraino cortou um pedaço e afirmou que são cheias de proteína e ácidos graxos de ômega-3.

“É ótimo”, disse enquanto uma delas escorrega de sua mão.

O chef marinou um pedaço em alho e manjericão e colocou na grelha. Preparou outro em uma cama de rúcula ao lado de um figo para tentar equilibrar o que todos concordaram ser um sabor muito salgado.

No final da degustação, havia várias porções intocadas sobre a mesa. Leone empacotou o alimento de um futuro globalmente mais aquecido para viagem.

“É para meus colegas. Eles estão um pouco céticos”, contou ela.


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