A expressão “me dá um litro de leite” deve ser ouvida ainda por muitos anos no balcão das panificadoras e mercados. Mas na relação do produtor com a indústria, o pagamento por quilo de leite, ou seja, pelo conteúdo sólido em vez do líquido, é uma realidade de alguns países europeus que deverá, em maior ou menor grau, avançar no Brasil.
Cerca de 88% do leite é água. O que conta, no entanto, para definir a qualidade do leite é o percentual de componentes sólidos. São eles, representados pelos índices de gordura e proteína, que fazem a diferença na hora de produzir aquela linha de queijos, iogurtes ou sorvetes com textura e sabor diferenciados.
Atualmente, uma pequena fração do preço do leite pago ao produtor leva em conta percentuais de gordura e proteína, de contagem bacteriana (indicador de higiene) e de células somáticas (indicador de saúde da vaca). O grosso do pagamento ainda é feito com base no volume líquido recolhido pelo laticínio.
“O problema é que somos um país em que, historicamente, falta leite. Com isso as empresas ficam mais focadas em estimular a quantidade e não a qualidade. Mas já está na hora de mudar isso, para termos derivados de leite de maior qualidade”, aponta Paulo do Carmo Martins, pesquisador da Embrapa Gado de Leite que participa nesta semana (28 e 29/09) do VII Congresso Brasileiro de Qualidade do Leite, em Curitiba.
Indústria de automóveis
O pesquisador diz que o exemplo vem da indústria automobilística. “Ela capta a demanda, percebe a mudança de comportamento do consumidor e organiza toda a cadeia para trás”. Esse tipo de coordenação é o que estaria faltando para a indústria leiteira. “É muito fácil virar laticinista no Brasil. As empresas que tentam fazer esse tipo de gestão pela qualidade acabam tendo dificuldade de competir com aquelas que são amadoras e que bagunçam o mercado”, avalia Martins.
A mudança nesse mercado “bagunçado” já está acontecendo em ritmo forte, e penoso, para alguns. A cada 11 minutos um produtor de leite deixa a atividade por não conseguir se adaptar ao ambiente mais competitivo, com margens estreitas e exigência de maior produtividade.
Wilson Thiesen, presidente do Sindicato da Indústria do Leite no Paraná, prevê que haverá inevitavelmente uma seleção natural e que 40 a 50% dos produtores deixarão a atividade. “Hoje existe mais de um milhão de produtores de leite, basta ter duas ou três vaquinhas e você se torna um produtor. Vão ficar apenas aqueles que produzem com mais qualidade”, diz Thiesen, que aponta ainda o problema causado pelo número excessivo de laticínios. “Só no Sul do país são quase 600 indústrias, e muitas agem pelo imediatismo, não têm visão empresarial de médio e longo prazo nem tecnologia para produzir produtos de melhor qualidade”, critica.
Na medida em que a cadeia do leite vai sendo reestruturada, a tendência é que a indústria se aproxime do produtor e “encomende” qualidades específicas do leite, conforme o tipo de produto industrializado. Para o queijo, por exemplo, o que conta é a presença da caseína. Essa proteína, junto com o cálcio, “constitui a matriz do queijo” –destaca Paulo Fonseca da Silva, pesquisador da Universidade Federal de Juiz de Fora. A coagulação da caseína é que, no primeiro momento, forma a massa do queijo. “A forma de encontrar o índice de caseína ainda é um desafio para a pesquisa, precisamos achar uma maneira melhor, mais rápida e acurada de fazer isso”, diz Silva.
Molhabilidade
Outro exemplo da relação direta entre os índices de sólidos e a qualidade do leite está na molhabilidade do leite em pó. Quanto mais solúvel – o consumidor não precisa ficar espremendo pelotas na xícara –, mais preservadas estão as proteínas e os glóbulos de gordura do leite. “A presença de proteínas do leite intactas, que não foram hidrolisadas, e também da gordura do leite, que não tenha sido rompida pelo estresse mecânico, favorece a indústria a produzir um leite em pó melhor do ponto de vista da instantaneidade”, aponta Paulo Fonseca da Silva.
Mas o pagamento por quilo de sólidos, em vez de litro de leite, é possível? “O teor de sólido é extremamente relevante para muitas formas de processamento do leite. E já há métodos analíticos confiáveis, adequados para esta medição. É um bom exemplo do que pode ser implementado”, afirma o pesquisador.
Há dez anos a Irlanda mudou a forma de pagar os produtores pelo leite cru. Saíram os litros, entraram os quilos no cálculo. “O pagamento por sólido maximiza o retorno para a indústria como um todo. Constatamos um aumento significativo dos percentuais de gordura e proteína e, em função disso, nossos produtores estão recebendo por ano 110 milhões de euros a mais do que no sistema antigo. Os índices de sólidos aumentam, os produtores recebem mais, e por causa disso, estão mais felizes”, resume Laurence Shalloo, pesquisador do Departamento de Desenvolvimento Agrícola e Alimentar da Irlanda.
Sobre o assunto, clique abaixo e confira trecho da entrevista com o pesquisador Paulo Fonseca da Silva, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
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