Mohammad Mohiedine Anis olha com pena seu Buick Super 1955 mutilado pelos intensos combates entre o exército e os rebeldes sírios que devastaram Aleppo durante mais de quatro anos.
Os blocos de pedra que caíram de um prédio de seu bairro de Shaar durante um bombardeio aéreo achataram o teto e afundaram o capô do veículo, imprimindo à grade do radiador uma espécie de ricto de sofrimento.
“Veja, está chorando. Está ferido e me pede ajuda”, afirma o colecionador de 70 anos, que promete consertar o carro agora que as armas se calaram desde que o exército retomou, em dezembro, o controle da segunda cidade da Síria.
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O bairro inteiro está em ruínas: os prédios esburacados ou desabados, janelas quebradas e as ruas tomada de poeira e escombros.
Mohammad, que estudou medicina na Espanha e depois traduziu para o árabe o manual Fiat na Itália, voltou para sua cidade para abrir uma fábrica de cosméticos, em particular de batons, que batizou de “Mila Robinson”.
Mas sua verdadeira paixão é a coleção de carros. Ela a herdou de seu pai, um rico colorista têxtil que dirigia um Pontiac 1950, carro que Mohammad guarda com a maior estima.
Chegou a ter 30 carros, mas perdeu dez, destruídos ou roubados durante a guerra. Treze estão estacionados diante de sua casa, outros sete estavam na garagem, mas foram retirados pela polícia porque obstruíam a passagem.
Cadillac de Nasser
Em fevereiro de 2016, um videojornalista da AFP entrevistou Mohammad, mais conhecido por seu apelido Abu Omar, e gravou seus carros reluzentes e sua casa então intacta.
“Gosto deles porque são como as mulheres, belas e fortes”, diz o colecionador, que tem duas esposas, uma em Aleppo e outra em Hama (centro), e oito filhos.
Seus gostos são bastante ecléticos, com uma preferência pelos veículos americanos dos anos 1950: Cadillac, Hudson, Buick, Chevrolet, Mercury. Ele também tem um Volkswagen e um furgão 2CV.
“Tenho três Cadillacs porque são os mais luxuosos. Todo colecionador deve ter um Cadillac. Se não tiver, é como se sua coleção não tivesse cabeça”, afirma com convicção.
Seu maior orgulho é um Cadillac 1947 vermelho e conversível, que foi usado ao menos por seis presidentes, uns eleitos democraticamente e outros chegados ao poder através de um golpe de Estado.
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Nesse Cadillac em questão, o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser e seu colega sírio Shukri al Kuwatli percorreram Damasco depois da proclamação, em 1958, da República Árabe Unida, produto da breve união entre o Egito e a Síria.
“Eu o comprei há 12 anos em um leilão por 620 libras sírias, mas me custou cem vezes mais porque nunca pagaram os impostos alfandegários”, explica.
Para que não seja roubado, Mohammad escondeu o volante e os bancos em sua casa.
Os carros estão feridos
Todos os carros estão em péssimo estado, desfigurados pelos combates.
“Estão todos feridos”, lamenta, como se falasse sobre pessoas. Ele os quer reformar inclusive antes de sua casa. “E tenho a intenção de comprar outros”.
Seu vizinho Nihad Sultan, um cantor de 30 anos, conta que, quando Mohammad foi embora durante os últimos dois meses de combates, os habitantes do bairro convenceram os rebeldes para que não instalassem uma metralhadora pesada antiaérea na caminhonete Chevrolet 1958.
Quando depois da vitória das forças do regime ele voltou para sua casa, construída nos anos 1930, a encontrou destruída. “Sofri um grande abalo”, conta.
A construção está um caos: vidros quebrados, pedras por todo lado, cômodos destruídos e tudo tomado por escombros.
De vez em quando se senta em seu quarto, como costumava fazer antes da guerra.
Acende seu cachimbo e ouve na vitrola Victor a canção Hekaya (História, em árabe), do cantor sírio Mohammad Dia al Din.
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“Gosto dessa música porque vive em mim. Meu passado foi muito feliz, mas as coisas mudaram. Agora está muito duro. Mas não podemos desanimar”, acrescenta.
Alguns estrangeiros se ofereceram para comprar seus carros, inclusive em mau estado. Ele recusa de cara.
“São meus filhos para mim. Eu os distribuirei segundo a lei religiosa: dois para cada filho e um para cada filha”, conclui.
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