Mercado e Setor
Qual o futuro da alimentação e da gastronomia pós-coronavírus?
De fato, estamos numa encrenca grande sem saber do futuro próximo… Já tivemos na história várias epidemias e pandemias, mas, possivelmente, sem abalar tanto as estruturas econômicas mundiais como agora.
A produção de alimentos saudáveis deixou de ser a preocupação para grande parte da sociedade há muito tempo. Nesta década é que começamos a dar ouvidos aos alimentos saudáveis, a começar na Europa, onde a boa alimentação é mais respeitada, assim como os pequenos produtores.
Ainda assim, há poucas iniciativas educativas para ensinar a plantar e criar animais em condições adequadas no mundo. Paralelamente, precisaria ensinamentos como higiene alimentar e pessoal nas escolas .
Aparentemente, educação básica e saúde pública ficaram para trás em muitos países. Se hoje damos prioridade e incentivos fiscais às empresas que produzem animais em condições mecânicas, no mínimo questionáveis, é porque ajudam na balança comercial de vários países e fazem a felicidade dos traders. Mesmo que o deslocamento de toda a produção de alimentos de continentes para outros acabe sendo um dos maiores poluidores do meio ambiente.
Os pequenos e médios produtores do mundo inteiro são asfixiadas por normas financeiras e de proibições, eliminando a criação de empregos e achatando a produtividade de qualidade. Como sempre, proibir é mais fácil do que ensinar e, também, menos trabalhoso. E garante mais dinheiro para quem tiver no comando do circo.
Na maioria dos países, deixou-se de investir na saúde pública e na educação básica e passou-se a tratar o ato de se alimentar como ação mecânica igual a de um animal, trazendo uma taxa de obesidade alarmante no mundo. Tudo reforçado por anúncios publicitários na TV e nas redes sociais.
Como se comer fosse um ato depressivo animalesco: é só abrir a boca e enfiar na goela. Geralmente, esses consumidores são os primeiros a criticarem os criadores de pato para o foie gras, em sua maioria produzido por pequenos produtores que preservam uma herança gestual e mantém condições higiênicas adequadas. O ato de comer foie gras pratica quem quer. Será que é pior do que criar aves em gaiolas, que são abatidas no prazo de 25 dias? Ou matar na máquina de moer os pintinhos machos?
Será que o melhor caminho não seria incentivar a produção agrícola de pequenos produtores bem formados intelectualmente e de alto preparo técnico, cientes dos seus atos, respeitando a sua cultura e a sua tradição com normas de higiene e baseada no respeito aos outros?
A indústria nefasta do fumo abraçou o setor de alimentos. Fez e faz o que eles fizeram com o cigarro, induzindo uma população a consumir tudo que eles querem e evitando que iniciativas de produção de alimentos locais regionais e nacionais de qualidade possam acontecer.
Você talvez não vá entender porque eu fico revoltado e o que isso tem a ver com esse vírus. Estão dizendo que veio do mercado de Wuhan, onde não havia condições higiênicas. O local é frequentado por pessoas de baixa renda sem opções, conforme eu li em artigos escritos por jornalistas locais e estrangeiros.
Jamais esse pessoal, aparentemente, teria como adquirir um produto melhor para se alimentar. Mas, podemos fechar os olhos e deixá-los, então, se alimentarem como sempre fizeram, de animais mortos ali mesmo, sem condições higiênicas adequadas? Aí é que está o grande problema. É preciso direcioná-los urgentemente para um programa de educação de produção para a venda de alimentos em condições adequadas .
Num mundo tão globalizado em que vivemos hoje, não podemos desrespeitar as tradições dos povos, mas sim, precisamos ajudar a melhorar as condições de criações de animais de abate e de venda de forma sustentável.
Se a indústria de alimentos quer continuar no mesmo caminho, com a justificativa que há cada vez mais gente no planeta, ok. Mas deixem viver os outros pequenos e médios produtores, de modo que eles possam participar efetivamente do incentivo a uma política educacional alimentar nas escolas e que eles ajudem, via pequenos e médios produtores, a oferecer melhor alimentação para população e não só distribuir dividendos aos acionistas.
Peste de Marseille de 743, a gripe espanhola no início do século 20, as gripes asiáticas de 1957, 2003 e 2009... As epidemias e pandemias se disseminaram por falta de enxergar o mundo, o que fez com que a sociedade não se preparasse ou soubesse se antecipar a elas, achando que são coisas do passado . Antecipar as manobras do inimigo sempre é a melhor defesa. E aí? Vamos aprender? Eu não quero ser pessimista, mas, a priori, até agora, o mundo sempre esquece de tudo muito rápido .
Qual o futuro da gastronomia nessa situação de hoje? Não sei! Se nada for feito em termos de produção e educação, não vejo muito futuro para gastronomia. Se há futuro para vender comida saudável, dentro de uma prerrogativa educacional e de saúde pública, ainda não sabemos.
Só se pode lamentar o que está acontecendo e eu compartilho esse momento, que jamais imaginei conhecer na minha vida de cidadão e de cozinheiro, com os meus colegas restaurateur, dignos desse nome. Todos eles estão preocupados em oferecer o melhor para os clientes e eu, como chef e proprietário da Escola e do Instituto Laurent, ainda quero acreditar que o melhor remédio numa sociedade é a consciência adquirida com educação e formação. No setor da gastronomia, o grande desafio das gerações futuras é alimentar dignamente o mundo.
Para fechar, cito o botânico francês Joseph Roques, de meados do século 19, que dizia: “Os cozinheiros, esses artesãos, mal-amados e rejeitados, um dia o mundo entenderá, que eles são os embaixadores da paz !"
A bonne entendeur, Salut!
*Laurent Suaudeau é natural do Vale do Loire, na França. Iniciou a carreira nos anos 80, sob a batuta do aclamado Paul Bocuse, que o apresentou ao Brasil. Por aqui, já comandou diversos restaurantes, como Laurent, no Rio de Janeiro, e o ModeVie Par Laurent, em Gramado. Atualmente, se dedica exclusivamente à Escola Laurent Suaudeau.