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Lançamento: a Cruzeiro München é uma lager escura, estilo Munich Dunkel.

Receitas e Pratos

Cervejaria curitibana resgata receita centenária

Juliana Girardi, especial para o Bom Goumet
18/05/2021 11:40
É tendência: cadernos antigos com receitas das vovós viram livros, inspiram blogs, dão origem a perfis que acumulam milhões de seguidores e até servem de conceito para a criação de novos restaurantes. Mas o que é feito com as receitas deixadas pelos vovôs? No caso da família Leitner a resposta é: cerveja!
Há cerca de seis anos, quando o publicitário Beto Glaser começou a se interessar por cervejas especiais e a estudar seu processo artesanal de produção, foi informado por seu pai de que o malte já corria no sangue da família há gerações. O bisavô de Beto, o imigrante austríaco João Leitner, foi fundador, por volta de 1870, da Cervejaria Cruzeiro, uma das pioneiras na fabricação da bebida no Paraná, e também criador das primeiras receitas de cervejas produzidas para venda no estado.
Sob a cuidadosa tutela da tia de Beto, a socióloga e professora da UFPR Niroá Glaser, que mantém intactos os acervos documentais de ambas as famílias, as receitas de cervejas de João Leitner vêm, aos poucos, sendo resgatadas por seu bisneto e comercializadas na Cervejaria Curitibana, pequena loja onde ele dá continuidade ao legado cervejeiro do clã.
Adequando alguns ingredientes e simulando ao máximo o processo de produção trazido ao Brasil por seu bisavô no século 19, Beto Glaser lançou, em 2018, a lager clara Cruzeiro Keller Bier. Já a mais nova descoberta oriunda do tesouro do bisavô Leitner é a receita da recém-lançada Cruzeiro München, lager escura, ao estilo Munich Dunkel.
Até o momento, as fórmulas centenárias criadas por João Leitner para matar as saudades da cerveja que ele bebia na Áustria vem se mostrando atemporais. Servidas em formato chope, tanto a Cruzeiro Keller Bier quanto a Cruzeiro München caíram no gosto do público cervejeiro. De um lote inicial de 300 litros, a nova lager escura da marca, aumentou a produção mensal para 500 litros em plena pandemia.
Carroça de transporte da cerveja Cruzeiro.
Carroça de transporte da cerveja Cruzeiro.
“Conseguimos utilizar ingredientes os mais similares possíveis para não perder as características, mantendo a estrutura e o sabor da Cruzeiro München original. Ela tem um sabor leve, baixo teor alcoólico (5% ABV), uma espuma cremosa e pouco amargor. E diferente de outras cervejas escuras, ela não é sazonal”, explica Beto Glaser.
Além da boa recepção do público, a certeza de que a receita do bisavô Leitner foi atualizada com sucesso veio após o crivo de dois personagens muito importantes dessa história: a tia Noriá e o pai de Beto Glaser. “Assim que provaram, eles disseram ter sentido o mesmo aroma que a fábrica tinha naquela época”, revela Beto, orgulhoso.

Do jeito tirolês

Nascido no Tirol, na Áustria, João Leitner veio para o Brasil em 1866. Após não se adaptar ao clima tropical de Joinville, a família mudou-se para Curitiba em 1868, onde construiu um hotel na Rua XV de Novembro esquina com a Rua Barão do Rio Branco. Lá, montou uma pequena cervejaria e passou a produzir suas receitas. A notícia da cerveja dos Leitner logo se espalhou entre os imigrantes europeus que viviam na capital paranaense e que, assim como João, sentiam falta de saborear a bebida.
Em 1902, os irmãos Julio e Luiz Leitner (filhos de João Leitner) adquiriram as instalações de uma fábrica de cervejas localizada no bairro do Batel. Rebatizada de Cruzeiro em 1904, a fábrica passou a funcionar no final da Alameda Dom Pedro II, onde hoje está um prédio residencial. Com capacidade para produzir 30 mil litros de cerveja por dia, a Cruzeiro ganhou simpatia popular e suas marcas logo se tornaram as favoritas da época. A fábrica produziu inú - meras marcas de cerveja claras e escuras, sendo a mais famosa a Cerveja Pomba, além de ter sido precursora da fabricação de cerveja de baixa fermentação no Paraná.
Fábrica funcionava em uma barracão nos fundos do Parque Cruzeiro.
Fábrica funcionava em uma barracão nos fundos do Parque Cruzeiro.
O imóvel da cervejaria possuía um bosque onde se realizavam festas particulares, o famoso Parque Cruzeiro, localizado na antiga Avenida Siqueira Campos, hoje Avenida Batel. Nos fundos, existiam dois barracões: em um deles funcionou talvez o primeiro clube de bolicheiros da cidade, o Batel Boliche Clube. No outro barracão, estava instalada a Churrascaria Cruzeiro, onde, além do filé, era servida uma famosa costela de ripa, sempre acompanhada de saladas – a de batatas era a mais famosa da época na cidade.
O sucesso obtido pela fábrica curitibana ao longo dos anos chamou a atenção da então já poderosa Cervejaria Brahma que, em 1940, fez uma proposta irrecusável para a compra total da Cervejaria Cruzeiro. Na negociação, a experiência e o conhecimento de Frederico Leitner (neto do fundador) o levaram a assumir uma das diretorias técnicas da Brahma, onde trabalhou por mais de trinta anos. A Cervejaria Cruzeiro não existe mais, mas a marca e as receitas ficaram com as famílias Leitner/ Glaser.
  • Fonte: Livro “Famílias do Velho Mundo no Comércio do Paraná”, de Niroá Glaser (Senac, 2011) e blog “Fotografando Curitiba”, de Flavio Antonio Ortolan.