Receitas e Pratos
Cervejaria curitibana resgata receita centenária
É tendência: cadernos antigos com receitas das vovós viram livros, inspiram blogs, dão origem a perfis que acumulam milhões de seguidores e até servem de conceito para a criação de novos restaurantes. Mas o que é feito com as receitas deixadas pelos vovôs? No caso da família Leitner a resposta é: cerveja!
Há cerca de seis anos, quando o publicitário Beto Glaser começou a se interessar por cervejas especiais e a estudar seu processo artesanal de produção, foi informado por seu pai de que o malte já corria no sangue da família há gerações. O bisavô de Beto, o imigrante austríaco João Leitner, foi fundador, por volta de 1870, da Cervejaria Cruzeiro, uma das pioneiras na fabricação da bebida no Paraná, e também criador das primeiras receitas de cervejas produzidas para venda no estado.

Sob a cuidadosa tutela da tia de Beto, a socióloga e professora da UFPR Niroá Glaser, que mantém intactos os acervos documentais de ambas as famílias, as receitas de cervejas de João Leitner vêm, aos poucos, sendo resgatadas por seu bisneto e comercializadas na Cervejaria Curitibana, pequena loja onde ele dá continuidade ao legado cervejeiro do clã.
Adequando alguns ingredientes e simulando ao máximo o processo de produção trazido ao Brasil por seu bisavô no século 19, Beto Glaser lançou, em 2018, a lager clara Cruzeiro Keller Bier. Já a mais nova descoberta oriunda do tesouro do bisavô Leitner é a receita da recém-lançada Cruzeiro München, lager escura, ao estilo Munich Dunkel.
Até o momento, as fórmulas centenárias criadas por João Leitner para matar as saudades da cerveja que ele bebia na Áustria vem se mostrando atemporais. Servidas em formato chope, tanto a Cruzeiro Keller Bier quanto a Cruzeiro München caíram no gosto do público cervejeiro. De um lote inicial de 300 litros, a nova lager escura da marca, aumentou a produção mensal para 500 litros em plena pandemia.

“Conseguimos utilizar ingredientes os mais similares possíveis para não perder as características, mantendo a estrutura e o sabor da Cruzeiro München original. Ela tem um sabor leve, baixo teor alcoólico (5% ABV), uma espuma cremosa e pouco amargor. E diferente de outras cervejas escuras, ela não é sazonal”, explica Beto Glaser.
Além da boa recepção do público, a certeza de que a receita do bisavô Leitner foi atualizada com sucesso veio após o crivo de dois personagens muito importantes dessa história: a tia Noriá e o pai de Beto Glaser. “Assim que provaram, eles disseram ter sentido o mesmo aroma que a fábrica tinha naquela época”, revela Beto, orgulhoso.
Do jeito tirolês

Nascido no Tirol, na Áustria, João Leitner veio para o Brasil em 1866. Após não se adaptar ao clima tropical de Joinville, a família mudou-se para Curitiba em 1868, onde construiu um hotel na Rua XV de Novembro esquina com a Rua Barão do Rio Branco. Lá, montou uma pequena cervejaria e passou a produzir suas receitas. A notícia da cerveja dos Leitner logo se espalhou entre os imigrantes europeus que viviam na capital paranaense e que, assim como João, sentiam falta de saborear a bebida.

Em 1902, os irmãos Julio e Luiz Leitner (filhos de João Leitner) adquiriram as instalações de uma fábrica de cervejas localizada no bairro do Batel. Rebatizada de Cruzeiro em 1904, a fábrica passou a funcionar no final da Alameda Dom Pedro II, onde hoje está um prédio residencial. Com capacidade para produzir 30 mil litros de cerveja por dia, a Cruzeiro ganhou simpatia popular e suas marcas logo se tornaram as favoritas da época. A fábrica produziu inú - meras marcas de cerveja claras e escuras, sendo a mais famosa a Cerveja Pomba, além de ter sido precursora da fabricação de cerveja de baixa fermentação no Paraná.

O imóvel da cervejaria possuía um bosque onde se realizavam festas particulares, o famoso Parque Cruzeiro, localizado na antiga Avenida Siqueira Campos, hoje Avenida Batel. Nos fundos, existiam dois barracões: em um deles funcionou talvez o primeiro clube de bolicheiros da cidade, o Batel Boliche Clube. No outro barracão, estava instalada a Churrascaria Cruzeiro, onde, além do filé, era servida uma famosa costela de ripa, sempre acompanhada de saladas – a de batatas era a mais famosa da época na cidade.
O sucesso obtido pela fábrica curitibana ao longo dos anos chamou a atenção da então já poderosa Cervejaria Brahma que, em 1940, fez uma proposta irrecusável para a compra total da Cervejaria Cruzeiro. Na negociação, a experiência e o conhecimento de Frederico Leitner (neto do fundador) o levaram a assumir uma das diretorias técnicas da Brahma, onde trabalhou por mais de trinta anos. A Cervejaria Cruzeiro não existe mais, mas a marca e as receitas ficaram com as famílias Leitner/ Glaser.
- Fonte: Livro “Famílias do Velho Mundo no Comércio do Paraná”, de Niroá Glaser (Senac, 2011) e blog “Fotografando Curitiba”, de Flavio Antonio Ortolan.