O tradutor é, antes de tudo, um leitor febril e apaixonado. Se assim não fosse, como um escritor como o mineiro Ivo Barroso, um dos mais importantes e premiados tradutores brasileiros, conseguiria se debruçar com tanta sofreguidão sobre obras como a poesia completa de Arthur Rimbaud; os 42 Sonetos, de Shakespeare; e o teatro completo, de T.S. Eliot?
Leia trechos da entrevista que Barroso concedeu, por e-mail, ao Caderno G. Há um dito italiano que afirma: "Traduttore, tradittore". E um provérbio machista: "Tradução é como mulher: quando é bela não é fiel, quando é fiel não é bela." Em sua opinião, todo o tradutor é um traidor?Ivo Barroso - A expressão italiana, criada certamente por força do trocadilho, refere-se em geral a um desconhecimento lingüístico do tradutor ao mal interpretar o sentido de uma palavra ou frase, ou ao fazer acréscimos ou supressões no texto original. A não ser por um lapso, o bom tradutor jamais será acusado de traidor. Quanto à fidelidade, acho perfeitamente possível chegar-se a uma tradução ao mesmo tempo bela e fiel, desde que essa beleza já esteja no original. "Embelezar" o original é que seria traí-lo.
Fidelidade e precisão significam a mesma coisa quando se fala em tradução?A boa tradução pressupõe a transposição para outra língua não só do que foi escrito, mas igualmente da maneira como foi escrito. Manter-se fiel apenas ao "espírito" do texto sem observar-lhe a "forma" é apenas meia-fidelidade.
O tradutor é um adaptador, que cria versões da obra original? Pode ser. Há obras que, se traduzidas da maneira como estão no original, perdem inteiramente o sentido para o leitor da tradução. Se o texto é perfeitamente inteligível na língua original, a boa tradução requer que o seja igualmente na língua traduzida.
É possível que uma tradução supere em qualidade o texto original?O máximo a que um tradutor pode aspirar por seu trabalho é que ele esteja à altura do original. Por melhor que seja uma tradução, ela será sempre a imagem, o reflexo, o modelo de algo preexistente. Mas há traduções que representam, em nossa língua, equivalentes perfeitos de seus textos de origem; refiro-me, por exemplo, à tradução de O Corvo, de Edgar Allan Poe, feita por Milton Amado, e a Cyrano de Bergerac, por Carlos Porto Carreiro.
Todo livro pode ser traduzido?Teoricamente tudo pode ser traduzido, se entendermos por tradução um produto similar em outra língua, já que a identidade é impossível. Por mais intrincado que um texto seja em determinada língua, haverá sempre um modo de representá-lo em outra, guardando suas características gerais. Há textos que parecem "funcionar" apenas na língua original (trechos rimados, com jogos de palavras ou especificidades idiomáticas), mas será sempre possível obter-se isotopias ou transposições que "equivalham" a esses acidentes lingüísticos. Essa "equivalência" será tanto maior quanto for a capacidade (talento?) do tradutor. É claro que livros como, por exemplo, Ulisses, de Joyce, ou Sagarana, de Guimarães Rosa, sofrem grandes transformações ao serem traduzidos, mas isto não quer dizer que "morram"; ao contrário, ressuscitam em outra dimensão da escrita.
Quais são as contribuições que o tradutor pode dar à obra original?Sua capacidade de leitor privilegiado, de investigador da escrita, da profunda compreensão do texto, da dedicação à obra, do conhecimento lingüístico, sua persistência em reproduzir o texto de modo a que lembre o mais próximo possível o seu modelo. Como contribuição pessoal, o tradutor pode, em muitos casos, enriquecê-lo mediante notas de pé de página, mormente quando estas sirvam para colocar o leitor brasileiro em pé de igualdade com o leitor do original no que respeita ao entendimento do texto.
Em que medida traduzir pode ser prazeroso ou desgastante?Embora só traduza os livros que escolho, há trabalhos com data marcada que exigem grandes esforços. O teatro completo de Eliot (690 págs.) foi um deles. Mas em geral, a tradução é gratificante por podermos exercer nossa atividade criadora, a cada frase, a cada busca, a cada encontro da palavra adequada; e lúdica, por nos induzir a esse caminhar no arame à procura da sintonia com o estilo do autor. Em meu caso pessoal, posso falar também de seu caráter inibidor: só muito tarde publiquei algo de meu, empenado que estava na divulgação da obra alheia.
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