Estreia
Dupla brasileira investiga o trabalho
Sempre segura e despachada, a produtora Sara Silveira não escondeu a emoção ao apresentar Trabalhar Cansa, dos estreantes Marco Dutra e Juliana Rojas, exibido na noite de quinta-feira (12) dentro da seção Um Certo Olhar, no 64.º Festival de Cannes. Trêmula e com lágrimas nos olhos, ela dedicou a sessão ao Brasil, com uma bandeira nas mãos. O filme concorre ao prêmio desta mostra e também à Caméra DOr, para cineastas em primeiro filme.
Trabalhar Cansa é uma investigação sobre o trabalho, tema fundamental para a classe média de que trata o filme. Otávio (Marat Descartes) perde o emprego exatamente na hora em que sua mulher, Helena (Helena Albergaria), encontra um lugar para montar o mercadinho com que sonha. Ela precisa contratar empregados para a casa e para o comércio, revelando sua face capitalista, ao mesmo tempo em que o marido procura trabalho no universo cada vez mais maluco de agências e dinâmicas de grupo.
Como nos curtas da dupla, aqui também há um clima de estranheza que vai crescendo à medida que Helena começa a ver coisas inexplicáveis. "Temos interesses muito amplos, a gente pega esses elementos terror, Disney e mistura", disse Dutra à Gazeta do Povo. "Mas a gente faz tudo em função da história, não tem interesse em criar um estilo que seja nosso", completou Juliana. A questão é que, talvez até pela duração maior, os elementos fantásticos aqui parecem um pouco menos orgânicos. Mas, sem dúvida, os dois mostram talento e possibilidade de um futuro interessante no cinema. (MM)
DivulgaçãoTrabalhar Cansa está na mostra Um Certo Olhar
Balanço
Novas diretoras e autores consagrados
Muito se falou sobre a presença de mulheres na competição do 64.º Festival de Cannes. Há um recorde de quatro filmes dirigidos por mulheres entre 20 concorrentes e três passaram nos três primeiros dias do evento, que iniciou morno.
Karim Aïnouz correu para terminar O Abismo Prateado, que exibe na Quinzena dos Realizadores, mostra paralela ao Festival de Cannes, na próxima terça-feira (17). Ele foi convidado pelo produtor Rodrigo Teixeira para dirigir um filme inspirado por uma canção de Chico Buarque, "Olhos nos Olhos". Em vez de fazer uma tradução literal, ele buscou a história daquela mulher. O Abismo Prateado, junto com Trabalhar Cansa (leia quadro ao lado), são os únicos longas-metragens brasileiros em Cannes. O diretor disse que pensa muito nas razões que deixam o cinema brasileiro fora da competição dos grandes festivais internacionais, mas acha que isso está para mudar com a nova geração que vem por aí. O diretor de Madame Satã e O Céu de Suely falou à Gazeta do Povo logo depois de desembarcar na cidade francesa, na tarde da quinta-feira (12).
Como uma canção do Chico Buarque virou filme?
A canção "Olhos nos Olhos" é bastante narrativa. Apesar de ter sido composta pelo Chico, o narrador é uma mulher, numa espécie de carta de reconciliação. A Bia Bracher e eu, que sou apenas corroteirista, não quisemos contar a história, mas falar sobre esse mulher e por que escreveu. Queríamos falar mais, tentar fazer o retrato dessa pessoa, do que reproduzir a carta em si. O segundo ponto foi o nome da música. "Olhos nos Olhos" sugere algo franco. Provavelmente, esse homem foi embora e não olhou nos olhos dela. Foi isso que norteou o roteiro. É o impacto que essa notícia tem. É um filme concentrado no tempo, desde o momento em que ela recebe esse recado até o amanhecer do outro dia. E eu tinha vontade de fazer um filme de amor e desamor. Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo já era um pouco. Foi um presente ter podido fazer este a partir da música. Mas, como todo filme meu, o roteiro é muito diferente do filme.
Por que escolheu a Alessandra Negrini?
Eu estava meio com medo dessa coisa de ficar como o diretor da descoberta... Achei que era a hora de parar com essa palhaçada! (risos) Tinha a curiosidade de trabalhar com alguém conhecido, sempre gosto de me expor a coisas novas, senão fica chato. Eu sou noveleiro de vez em quando e tinha visto a Alessandra no papel duplo em Paraíso Tropical, do Gilberto Braga. O Rodrigo (Teixeira, produtor) teve essa ideia e achei boa. Queria ver como ela se sairia num filme mais intenso, menor, mais sensorial. E acho as escolhas dela interessantes, ela faz novela e aí vai fazer filme do Julio Bressane. E foi bacana. No começo, não andou tão rápido, a televisão cria um ambiente de interpretação específico. Mas conversamos e foi tudo bem. Há diferença entre trabalhar com o ator bruto e o ator com experiência. Eu espero ter tirado dela qualquer lembrança de outra coisa que não seja a personagem.
Você está preparando outro projeto, Praia do Futuro. Este aqui acabou entrando na frente?
Foi uma furação de fila danada! Eu ia rodar Praia do Futuro no final de 2010, porque ele vai ser filmado em Fortaleza e em Berlim e queria pegar a luz de inverno na Alemanha. No fim de 2009, o Rodrigo Teixeira me apresentou o projeto de O Abismo Prateado. Eu estava saindo da série Alice e disse "por que não?". Mas disse "por que não" com 50 milhões de pés atrás. Achava um desafio fazer tão rápido, mas decidi tentar, fazia tempo que não estava num set de filmagem. Mas é aquela coisa, não existe fazer filme em um ano. Nada que é bom é rápido. Achei corajoso do Rodrigo dizer "vamos". Aí adiei Praia do Futuro para o final deste ano. Saindo de Cannes, vou me dedicar a ele.
O que pode falar sobre o novo projeto?
É uma história simples, sobre dois irmãos, um de 28 anos e outro de 12. O primeiro é salva-vidas na Praia do Futuro, em Fortaleza. Ele se apaixona por um alemão que vai trabalhar numa daquelas usinas eólicas do Ceará e vai embora para a Alemanha. Perde o contato com a família. Seis anos mais tarde, quando o irmãozinho faz 18 anos, ele vai para a Alemanha atrás do mais velho, que era seu grande herói, a quem ele chamava de Aquaman. A trama veio da vontade de entender a relação entre irmãos, porque sou filho único. E queria filmar nesses dois lugares.
Os brasileiros têm estado ausentes das lista de selecionados para a competição de festivais como Cannes. Por quê?
É curioso, eu penso muito nisso. Não tem a ver com a geografia, porque em geral tem tido latino-americanos nas seleções. É uma questão complexa. Eu acho que não tem, mas vai ter. Vem aí uma nova geração, graças a Deus está tendo uma renovação. São cinéfilos, que estudaram. Não que para ser cineasta precisa ter estudado, mas são pessoas que vieram de ambientes cinematográficos. O cinema se tornou possível no Brasil. Eu sou uma exceção na minha geração, porque, por uma série de circunstâncias, não precisei fazer publicidade. E esses meninos não estão mais precisando. Eu vi a lista de coisas a saírem neste ano e tem muita coisa promissora, primeiros filmes. Eu acho que esse cenário vai mudar rapidamente, daqui a dois anos.
Você acha que é questão de geração?
É complexo para mim analisar o passado porque sou realizador. Mas eu me lembro que, quando fiz Madame Satã, por exemplo, a gente conversava sobre captação. E eu me lembro de pensar: mas a gente não deveria estar falando de cinema, de filmes? Mas a gente precisava falar disso, a gente estava tentando colocar as coisas em pé. É normal, isso leva tempo. Se hoje tem infra, é porque a gente teve de fazer. E muita gente teve de fazer outras coisas que não eram cinema, dramaturgia. Publicidade, por exemplo. Aí se perdeu essa coisa de saber contar história. Tem gente que diz que a publicidade é uma escola, mas não é a melhor escola. Claro, tem exceções, o Fernando Meirelles está aí para provar. Eu vim a Cannes com Madame Satã nove anos atrás. Havia uma excitação em relação ao cinema brasileiro que não se cumpriu. Mas eu acho que agora vai explodir. Tem uma série de diretores com força autoral, olhar.
Então você acha que são cineastas que assistem a filmes.
Sim, eles adoram ver filme. Não dá para vender biscoito se você não gosta de comer biscoito, certo? Eu sempre pergunto para o produtor qual o último filme que ele viu, o que ele achou.
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