A indústria do crime globalizada

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A Máfia italiana tem um espaço cativo no imagináro coletivo. Envolta em uma aura de mistério e de dualidade moral – o crime e a lealdade, o culto à religião e o desprezo pela lei –, suas peculiaridades foram exploradas à exaustão pela literatura e pelo cinema, sem que o tema tenha sido de fato esgotado. Uma das últimas produções que tratam do tema, o filme italiano Gomorra, baseado no livro homônimo do escritor Roberto Saviano, mostra criminosos despidos da vaidade e do glamour que o diretor Francis Ford Coppola imortalizou com a saga O Poderoso Chefão. Mais do que isso, porém, o filme e o livro tentam desnudar a engrenagem com que a Camorra, a organização criminosa formada em Nápoles e arredores, move suas influências e seus negócios mesmo nas áreas aparentemente legalizadas.

O principal insight de Gomorra é a noção de que os tentáculos do crime organizado se estendem além da contravenção óbvia do tráfico de drogas e armas, jogos e prostituição. Empresas sanitárias, alfaiatarias e o já conhecido sistema de proteção a estabelecimentos comerciais também estão entre os ramos de atuação da Máfia, o que torna difícil uma mensuração da influência deste poder paralelo.

Para o professor Juliano da Silva Cortinhas, coordenador do curso de Relações Internacionais da Unicuritiba, a estrutura da Máfia atualmente se assemelha muito mais a uma empresa do que ao modelo familiar de O Poderoso Chefão: "Ideias como a honra e a família tendem a não existir mais. É um grupo empresarial do crime que, como qualquer empresa, busca o lucro e valoriza a competência". Ele diz também que o que possibilitou o crime adentrar nesses novos nichos foi a capacidade de se readaptar ao mercado aliada a uma deficiência do poder fiscalizador. "É mais ou menos como opera o tráfico de madeira na Amazônia. A Máfia tem vantagens competitivas enormes em relação aos madeireiros legais. Reduz custos para os negociantes e ganha mercado. Isso é algo que empresas legalizadas têm dificuldade em fazer, pois há uma hierarquia e um atravancamento econômico com que os mafiosos não se preocupam por não se submeterem às leis", explica.

Um desvio do capitalismo

O economista e professor da Pontíficia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) Fábio Araújo explica que o modo como a Máfia opera é um desvio do sistema capitalista. Além de utilizar meios ilícitos para reduzir custos de serviços que seriam mais caros se estivessem dentro da lei, os criminosos também distorcem a realidade da concorrência: "A concorrência prega que o melhor serviço com o menor preço vence, o que não é necessariamente verdade no contexto do crime organizado. Ele atinge relações de custo que as outras empresas não conseguem. Isso também é prejudicial, porque as pessoas não entendem que esse tipo de concorrência desleal está ligado à Máfia".

Um exemplo dessa concorrência desleal é o ramo recolhimento, tratamento e despejo de lixo, uma das conhecidas áreas de atuação da Camorra. Em 2008, licitações mafiosas feitas em outras regiões da Itália resultaram no despejo ilegal de toneladas de lixo nas ruas de Nápoles. A crise só foi atenuada com a campanha "Nápoles Limpa", do ministro Silvio Berlusconi, que reabriu incineradores e transformou áreas militares em aterros sanitários .

Em uma entrevista concedida ao programa Milênio, do canal pago Globo News, Roberto Saviano, autor de Gomorra, explicou como a Máfia atua em uma transação de tratamento de lixo tóxico: "Tratar resíduos tóxicos custa muito caro. Então, chega uma empresa mafiosa, que não se apresenta assim, mas como uma empresa regular, e diz: ‘Nós lhe damos o certificado oficial de que você tratou seus resíduos com uma empresa legítima e cobramos de você um valor irrisório para esse tratamento.’ Todas as empresas passam a procurá-los. Através da corrupção de alguns funcionários, eles atestam que aquele resíduo foi tratado legalmente, mas ele foi jogado no rio ou foi enterrado". Saviano contou ainda que, em uma única transação de tratamento de lixo tóxico, o clã dos Casalesi, conhecido grupo mafioso do líder Francesco Schiavone, faturou 800 milhões de euros.

Poder difuso e invisível

Mesmo que se conheçam os principais ramos de atividade das Máfias italianas, fica difícil saber quem é quem nessa área que preza principalmente pela discrição. O italiano Salvatore Lupo, estudioso especialista no assunto, disse que mesmo os nomes das Máfias, como Camorra (Nápoles) e ‘Ndrangheta (Calábria), são termos genéricos: "Não existe uma única organização criminal que se chama Camorra ou ‘Ndrangheta. Esses grupos estão em diversas partes, com diversas atividades diferentes. Eles têm um poder centralizador, mas não há sempre um território ou um grupo delimitado. E isso mostra o quão complexo é o sistema de organização do crime".

Lupo completa ainda que a Máfia se distingue de outras organizações criminosas principalmente por estar infiltrada na política italiana. "Passamos por um período de muita influencia da Cosa Nostra [grupo criminoso da Sicília] sobre o governo. A maioria das Máfias não influencia diretamente a política nacional italiana, mas tem uma influência sobre a política local. Os mafiosos são ao mesmo tempo criminosos e políticos. É um problema grave no meu país", afirma. Contudo, o pesquisador é esperançoso: "Nos últimos anos, a Máfia passou por um período de grande opressão estatal. Antes os mafiosos eram habituados a não ser atacados, e agora têm dificuldade em garantir impunidade a seus afiliados e recrutar novos elementos".