Inveja dos Anjos: personagens que vivem no passado e comprometem o futuro| Foto: Kelly Knevels

O Zoológico de Vidro foi a mais grata surpresa do Festival de Curitiba até o momento. O texto de Tennessee Williams, dirigido por Ulysses Cruz, havia passado pela temporada paulista sem estardalhaço. Uniu-se de última hora à programação da Mostra Contemporânea, substituindo Às Favas com os Escrúpulos, sem nem constar do guia. Teve de ser transferido do Teatro Positivo para o Guairão, novamente em cima do laço, causando confusão entre os espectadores antes que o terceiro sinal soasse.

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Os entraves perdem completamente a importância diante da recriação das memórias do filho (Kiko Mascarenhas) de Amanda Wingfield (Cássia Kiss), uma mãe opressora que sintetiza as angústias, cobranças e repressões de todas as mães. Abandonada pelo marido, ama a prole a ponto de sufocá-la, despejando suas frustrações e esperanças. Pesa. Tanta pressão surte efeitos opostos: a contração da filha (Karen Coelho) em uma timidez patológica e o desejo de fuga do filho.

Ele é o narrador. Fala diretamente ao público (quebrando a quarta parede) de algum instante indefinido do futuro, depois de ter abandonado a casa. Cada elemento da encenação contribui para dar a peculiar consistência de memória ao que se vê – dos figurinos antigos e delicados, aos matizes da iluminação. E ao cenário, onde uma escada de incêndio e uma passarela ao fundo, no alto, remetem à evasão e permitem ao personagem-narrador olhar a cena (o passado) de cima.

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Havia sido dito que a atuação de Cássia Kiss estaria histérica. Engano. Ao subir um tom acima do realismo, a atriz faz com que cada palavra ou gesto de sua personagem ressoe como algo que se ouviu há muito tempo, mas ainda insiste sobre os pensamentos, sem lhes dar sossego. Um passado que o constitui e nunca o abandonará, por mais distante no tempo e no espaço que esteja.

Memória é também a matéria-prima do grupo Armazém, refinada no espetáculo Inveja dos Anjos. Uma montagem cuidadosa, na qual se destaca o texto de Paulo de Moraes e Maurício Arruda Mendonça. Influenciados pela dramaturgia norte-americana contemporânea (a referência ao país se reforça na trilha sonora em inglês), criam personagens complexos, enredados entre o passado e o presente. A estrutura narrativa é fragmentária, de um realismo que flerta com o fantástico, sem se perder do seu destino.

A peça estreou no Rio de Janeiro em um palco não-convencional, que a aproximava do público. Teria sido interessante vê-la em Curitiba em um espaço semelhante, que não distanciasse a plateia dos personagens como aconteceu no Teatro da Reitoria. Mesmo no palco italiano, é um dos grandes espetáculos presentes na Mostra Contemporânea deste ano.