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Sobre como negar a si mesmo

Das soluções para a angústia, a mais fácil é desistir, entregar-se às consequências, numa inevitável decadência ou, em caso extremo, à própria morte. Também há a fuga, a busca por paliativos que remetam a uma aparente solução, passando pelas drogas, alcoolismo, jogos, compulsões. Mas é possível enfrentá-la, buscando as causas para tentar resolver o problema. Porém, o que tem ocorrido é um desvio desse enfrentamento. Como disse Freud, nosso corpo está destinado à ruína e à dissolução, não pode prescindir da dor e da an­­gústia como sinais de alarme. Mas a sociedade mo­­derna tenta justamente eliminar esses sinais.

Numa época em que as pessoas não se permitem mais sofrer nem sentir dor, há mais de um século os psicofármacos trazem alívio para a humanidade, me­­nos pela atenção à saúde e mais pelos lucros fantásticos. O uso indiscriminado dessas substâncias é temerário, alerta o filósofo e psicanalista Mario Fleig, professor de Filosofia da Unisinos e membro da Escola de Estudos Psicanalíticos. "Se o sujeito funciona à base de fármacos, so­­fre a destituição dos valores próprios, de sua autonomia. Se está bem não é por mérito próprio, mas por causa dos medicamentos", observa. É, em síntese, a ne­­gação de suas capacidades.

Não faltam psicofármacos que prometem eliminar a angústia. Mas como, se esse mal-estar é inerente à existência humana? Seria como anular o que faz do homem um sujeito singular, que o distingue dos demais seres vivos. Relembrando Kierkegaard, é a partir do sofrimento da angústia que construímos nossa singularidade, é ela que nos distingue dos demais seres vivos. A indústria fármaco tem medicamentos cada vez mais eficazes para anulá-la. Essas drogas psicotrópicas alteram temporariamente o funcionamento do sistema nervoso central, mas não permitem à pessoa descobrir o que a faz sofrer, deixando muitas vezes em seu lugar a depressão.

É preciso tratar a causa da angústia para eliminar os sintomas. Do contrário, ela voltará. A cura passa necessariamente pela capacidade de racionalizarmos sobre a causa até a descoberta do que a desencadeou. Numa crise, o primeiro passo para contorná-la é controlar os pensamentos, analisar o contexto em que a angústia surge e dar um sentido a ela. Conversar com alguém de confiança ou procurar ambientes que deem conforto e segurança também ajuda. A angústia nasce das fraquezas emocionais, cujas causas mais recorrentes são frustrações, sentimento de culpa, conflitos pessoais, insegurança, tristeza, traição, perda, problema financeiro.

Fim de tarde em Oslo, Noruega. Edvard Munch passeia com dois amigos ao pôr-do-sol. Súbito, o céu fica vermelho-sangue. Ele reclina-se ofegante na mureta da ponte. Há sangue e línguas de fogo sobre a cidade inteira. Os amigos se­­guem, ele fica. Mais tarde, Munch dá cores expressionistas àquele momento de angústia. Não à toa, O grito rivaliza com a Mona Lisa em popularidade, talvez porque de­­pois daquele dia de 1893 o pintor soube dizer com pincéis o que toda a humanidade sempre sentiu, mas ninguém jamais soubera explicar de forma tão lúcida. Na angústia de Munch, a tela é o espelho que reflete nossas angústias, eis que somos humanos.

O que Munch teria sentido na­­quele instante crucial? Um vazio no peito, uma profunda melancolia, uma dor não física, sensação de insegurança, de ressentimento? Teria tido lembranças traumáticas que o dilaceraram por dentro? Teria sido tomado por um estado de aflição, de sofrimento sem causa aparente? Seja o que Munch tenha sentido, isso sempre foi e sempre será experimentado por to­­dos os homens, em todas as culturas, a qualquer tempo. A angústia é inevitável. Ela nos toma de assalto diante de nossas incertezas, da necessidade de decidir o que fazer de nossas vidas. Não há quem já não tenha padecido ou vá padecer desse mal-estar.

Religião, filosofia e psicanálise têm suas divergências, mas concordam que a angústia entra na nossa vida ainda no nascimento. Soren Kierkegaard (1813-1855) e Michel Foucault (1926-1984) disseram ser a experiência da angústia o ingresso do homem à condição hu­­mana. Para Kierkegaard, ela é o preço da liberdade e, por conseguinte, parte integrante da vida em liberdade, no que concordou Jean-Paul Sartre (1905-1980). Para Sigmund Freud (1856-1939), "o ato de nascer é a primeira experiência da angústia, sendo assim a fonte e o protótipo da sensação de angústia". No cristianismo, ela nasce do pecado original, com a escolha pelo fruto proibido.

Ninguém pode, portanto, esperar-se o único abençoado livre da angústia. Cedo ou tarde ela chega, não sem uma razão. Em Kierkegaard, a angústia é o edifício da identidade humana. Nossa singularidade não se constrói sem algum sofrimento. Somos livres para es­­colher o que queremos e nesse percurso ninguém escapa à angústia porque ela implica numa perda (da­­quilo não escolhido) e muitas in­­certezas. Ambicionamos ser livres e a liberdade implica fazer es­­colhas, que por sua vez desencadeiam angústias. Em última análise, seria dizer que nossa experiência de angústia é que nos torna singulares, nos faz diferentes uns dos outros.

Se Adão tivesse permanecido na condição animal, não teria sentido angústia. A angústia o revelou humano, diz o filósofo e psicanalista Mario Fleig, professor de Filosofia da Unisinos e integrante da Escola de Estudos Psicanalíticos. O animal sente medo, mas não an­­gústia. Kierkegaard não via esse sen­­timento como uma imperfeição humana. Dizia ele que tanto mais original o homem, mais profunda será sua angústia. Para Jacques Lacan (1901-1981), angústia é o afeto mais radical que temos, entendendo-se afeto como aquilo que nos afeta, nos atinge. Angústia, para ele, é o que se produz frente ao desejo do grande Outro, que na representação religiosa seria a divindade.

Em Sartre, a angústia surge no instante mesmo em que nos ve­­mos condenados à liberdade, a tomar decisões próprias sem a garantia de certezas, responsáveis diretos pelo que fazemos, com toda carga de implicações que isso representa. Mas é desse risco necessário que criarmos a nós mesmos, nosso "ser". É dessa forma, com liberdade e angústia, que escolhemos o que somos, definimos a nós mesmos. Já para Martin Heidegger (1889-1976), a angústia tem origem diversa da liberdade. Ainda assim, como Kierkegaard e Sartre, ele refuta o determinismo lógico de Friedrich Hegel (1770-1831), para quem tudo está logicamente predeterminado para acontecer.

Em Heidegger, a angústia resulta da precariedade da existência, algo temporário que paira entre o nascimento e a morte. Porém, ela tem seu valor. Segundo Heidegger, dentre todos os sentimentos e modos de viver, a angústia é que pode nos reconduzir à nossa totalidade como ser e juntar os pedaços a que somos reduzidos pela imersão na monotonia e na indiferença da vida cotidiana. Ao apreender e elaborar a angústia, ao intuirmos o absurdo da existência, nos percebemos como um "ser para a morte", isto é, aceitamos a morte como "a possibilidade absolutamente própria, incondicional e insuperável do homem".

Nesse estágio, segundo Heidegger, ou fugimos para a vida cotidiana, ou superamos a angústia manifestando nosso poder de transcendência sobre o mundo e sobre nós mesmos. A angústia, diz o filósofo alemão, "liberta o homem das possibilidades nulas e torna-o livre para as autênticas". Ou seja, a angústia como compreensão existencial nos possibilita transformar a necessidade em virtude. Munch transformou sua angústia numa obra de arte que adquiriu o estatuto de ícone cultural. É uma prova de que podemos sair melhor do que entramos nesse processo de dor interna.

Na visão de Heidegger e Foucault, a angústia faz parte da nossa condição de estar no mundo. Portanto, a fenomenologia seria mais eficiente para dimensioná-la, uma vez que essa abordagem tem a ver com uma estrutura psicológica do ser, isto é, com uma condição para a existência humana e não como um mecanismo psicológico, como sustenta a psicanálise. Freud vê a angústia como sendo estrutural e a apresenta nas formas de uma neurose de angústia e de uma psicose de angústia.

Na psicanálise, esse mal-estar sur­­ge dos conflitos entre as três instâncias psíquicas responsáveis pelo nosso equilíbrio. Nossas vontades (Id) vivem em constante atrito com o instinto repressor (Superego), ao que Freud chama angústia. Cabe ao Ego (ou consciência), fazer a mediação entre a liberalidade do Id e o controle excessivo do Superego, analisando quais vontades podem ser postas em prática. Um exemplo? Você teria como por em prática todas suas vontades, inclusive as inconfessáveis? Pois a consciência busca esse equilíbrio do aparelho psíquico e, por extensão, o equilíbrio de nossas ações no meio social, a partir dos códigos éticos, morais, legais.

Para melhor lidar com a angústia devemos levar em conta que existem imprevistos na vida, observa a psicanalista Sandra Moreira Oliveira, da Letra Psicanálise, de Curitiba. Precisamos abrir espaço ao inesperado na nossa agenda para sabermos assimilá-lo. "Lidar com o inesperado, com situações angustiantes, nos permite lidar melhor com nosso cotidiano", diz Sandra. As incertezas, e a angústia delas decorrentes, crescem à medida que a idade avança. "A criança tem certeza que a mãe vai buscá-la na escola, mas nós não temos sequer a certeza de que estaremos vivos ao final do dia".

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