Omissões
Ferramentas jurídicas tapa-buracos
A olhos vistos, o Judiciário vem suprindo lacunas esquecidas pelos outros atores institucionais geralmente pelo legislador. A inércia do Legislativo é tão conhecida e esperada, que o ordenamento jurídico prevê ferramentas jurídicas contra tais omissões. Entre elas, os mandados de injunção, que podem ser usados por qualquer cidadão que se sinta prejudicado se a inexistência de uma lei tornar inviável o exercício de seus direitos, inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.
O mais famoso mandado de injunção foi analisado pelo STF em 2007. Na ocasião, diante da inexistência de norma reguladora do direito de greve dos servidores públicos, o STF decidiu que, enquanto não for feita a regulamentação, valem as mesmas regras do setor privado. No julgamento, ao proferir seu voto, o ministro Celso de Mello criticou a desídia do Legislativo, destacando a necessidade de o Supremo dar efetividade ao texto constitucional. "A inércia arrasta consigo a descrença na Constituição Federal", afirmou o ministro.
Outra ferramenta para suprir vácuos legislativos é a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), que visa a dar ciência ao Poder competente para que tome as medidas necessárias para pôr fim à omissão existente. Por via de ADO, por exemplo, vem se tentando a regulamentação do direito de resposta regulamentação que deixou de existir após a revogação da Lei de Imprensa pelo STF.
Mas não é apenas o Legislativo que vem exigindo a interferência do Judiciário. O Executivo também é alvo das canetadas judiciais. Exemplos disso são os milhares de processos que pedem (e ganham) a garantia do direito à saúde dos cidadãos, por meio do fornecimento de medicamentos de alto custo, não disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde.
Como todo ator político, o Judiciário recebe críticas positivas e negativas por suas atuações mais expansivas, que roubam a cena dos outros personagens principais no palco institucional brasileiro. Já na trilha de abertura, um ponto digno de aplauso: ao ocupar o holofote do pouco inspirado Legislativo, ao menos o Judiciário garante a continuidade do espetáculo democrático. "Esse momento de ascensão judicial é positivo no sentido de que o Brasil é um país com tradição de hegemonia presidencial e com um Legislativo relativamente fraco, de modo que um Judiciário mais forte, com capacidade de ser um ator político relevante, contribui para um equilíbrio de poderes no Brasil e para a democracia", avalia o advogado Luís Roberto Barroso, professor de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Além disso, o protagonismo judicial geralmente agrada à grande parte da plateia brasileira, que espera do Judiciário um final feliz para seus dramas ainda que, muitas vezes, a espera seja longa, e o final, trágico. "O Judiciário está atendendo demandas sociais que não foram atendidas pelo Legislativo, como decisões que impuseram a fidelidade partidária e o fim do nepotismo. Isso é positivo: ao menos alguém está atendendo as demandas da sociedade", aponta Barroso.
Mas, se há aplausos, há também algumas vaias e olhares apreensivos dirigidos à expansão do Poder Judiciário. O advogado Clèmerson Merlin Clève, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal do Paraná (UFPR), faz o primeiro alerta: nem sempre a judicialização da política foi usada para assegurar conquistas sociais. Ele lembra o período que ficou conhecido nos Estados Unidos como "Era Lochner", entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do século 20, no qual o ativismo judicial, de cunho ultraliberal, impedia a implantação de qualquer mecanismo de justiça social. "O momento de maior ativismo judicial nos Estados Unidos foi a Era Lochner. Achamos interessante a judicialização da política quando ela é progressista, mas não podemos esquecer que nem sempre isso aconteceu".
Atualmente, o principal terror é que essa judicialização da política, aparentemente o médico no caso brasileiro, transforme-se em uma politização da Justiça, certamente o monstro. "Em certas circunstâncias, tal expansão pode significar uma politização do Judiciário, o que é negativo. Numa democracia, as decisões políticas, em regra, devem ser tomadas por quem tem voto", explica Barroso. Autor do livro Levando o Direito a Sério: Uma Crítica Hermenêutica ao Protagonismo Judicial (Conceito Editorial), lançado neste ano, Francisco José Borges Motta, promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, também alerta para o problema da politização da Justiça. "Reconhecer no juiz um 'agente político' não é a mesma coisa que lhe dar a autorização de fazer 'juízos políticos' sobre as questões que chegam à sua jurisdição", diz Motta.
Ator principal
Indiscutivelmente, o ator principal desse momento de protagonismo do Judiciário é o Supremo Tribunal Federal (STF). As recentes intervenções significativas da Corte na vida nacional evidenciam isso como no caso da votação da Lei da Ficha Limpa. Descontadas algumas decisões que parecem não ir ao encontro dos anseios da população e cenas de novela ruim (como os bate-bocas entre ministros), o STF vem desempenhando com traquejo seu papel. Segundo Clève, contudo, é preciso que o Supremo tenha cautela. "O STF deve ouvir as razões dos demais Poderes. Estamos procedendo a uma reforma política por meio de uma judicialização", opina o professor da UFPR. Para ele, no caso da votação da Lei da Ficha Limpa, apesar de o projeto ser "correto e adequado", teria sido "um pouco forçado" deixar a Lei valer para as eleições deste ano. "Esse foi um casuísmo para o bem. Mas e quando houver um casuísmo para o mal?", questiona Clève.
Com tamanho poder sobre os rumos da novela brasileira, os ministros do Supremo devem ser selecionados da maneira mais criteriosa possível. A Constituição Federal, no entanto, exige apenas que os ministros tenham entre 35 e 65 anos, "notável saber jurídico" e "reputação ilibada". Assim, o presidente da República, que é quem escolhe os membros do STF (para posterior aprovação do Senado Federal), tem poucos limites objetivos no processo de indicação para a Corte. "O que se tem visto é o acesso ao Supremo de juristas sem compromisso com a Justiça, meros legalistas, que muitas vezes adotam posições de inspiração política para garantir privilégios", opina o jurista Dalmo Dallari, professor da Universidade de São Paulo (USP).
Já na avaliação de Clève, o processo de escolha dos ministros do STF, semelhante ao dos Estados Unidos, não é ruim. Para ele, o problema é que, no Brasil, nem a sociedade, nem o Senado e nem a imprensa cumprem o papel fiscalizador que lhes cabe. "Nos Estados Unidos, não basta ter reputação ilibada e notável saber jurídico, porque a imprensa procura saber como pensa o indicado para o cargo e o Senado questiona-o sobre questões sensíveis e complexas", diz Clève.
Cotado para as últimas e as próximas vagas abertas no STF, Barroso diz acreditar que o método norte-americano de escolha dos ministros, adotado pelo Brasil, é melhor do que o modelo europeu, com indicação do parlamento. Isso porque, nas circunstâncias políticas brasileiras, em que o presidente tem mais representatividade e, consequentemente, mais responsabilidade do que o parlamento, é melhor que o primeiro assuma a escolha. "De qualquer forma, é preciso dizer: o Supremo é lugar para estadistas", completa Barroso.
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