Uma bienal de arte nasceu em plena favela na capital do Haiti, em 2009. Batizada de Ghetto Biennale, ela foi criada para ser uma espécie de “Salon des Refusés” de um coletivo de artistas sediado na região da Grand Rue – uma longa avenida do centro da capital Porto Príncipe, que termina em um labirinto de ruelas apinhado de oficinas mecânicas.
Ausentes das principais bienais do mundo por falta de apoio governamental e até negativas de visto, os escultores do Atis Rezistans ficaram conhecidos pelas obras pós-apocalípticas que constroem com o ferro velho, o lixo industrial e outros refugos do declínio econômico do Haiti– mais tarde amalgamados com os crânios humanos e toda sorte de escombros deixados pelo terremoto que devastou o país em 2010.
“Os Escultores da Grand Rue” vinham criando uma arte nova, mais sombria do que as obras idílicas e de cores tropicais da geração da Renascença Haitiana da década de 1940 – um dos principais períodos da história da arte do país. E quiseram provocar os artistas dos países do norte a testemunhar e se envolver com este movimento.
A ideia atraiu nomes conhecidos na Europa e nos Estados Unidos, como Bill Drummond (fundador do projeto de acid house britânico KLF e da K Foundation) e o pessoal da banda canadense Arcade Fire ao longo de suas três edições anteriores – movidas, em especial, pela proposta de reunir artistas de origens e contextos radicalmente diferentes (veja fotos da edição de 2013).
Brasil
Agora, se movimentando em outra direção, a bienal começa a se interessar também pelo Brasil, de onde vêm dois dos mais de 80 projetos participantes da quarta edição, que acontece entre o fim de novembro e o início de dezembro de 2015.
US$ 4 mil
deve ser o custo da ida de Gustavo Malucelli à Ghetto Biennale, que não financia a participação dos artistas. Ele está buscando recursos por meio de uma campanha no Catarse ( catarse.me/alivium)
Um deles é o curitibano Gustavo Malucelli. O artista visual propôs a criação de três a cinco murais sequenciais nas ruas de Porto Príncipe e um no Brasil. Juntos, formarão uma obra única, que pretende significar a ligação entre os dois países por meio desta conexão geográfica e através elementos em comum como as religiões de matriz africana.
“Há muitos haitianos vivendo no Brasil e há ligações compartilhadas e recíprocas entre o vodu e o candomblé”, conta a artista britânica Leah Gordon, curadora e co-criadora da Ghetto Biennale ao lado do Atis Rezistans.
“Curatorialmente, estamos sempre equilibrando a força dos projetos e a origem dos artistas. Queremos privilegiar mais o engajamento Sul-Sul. Dito isto, nunca aceitaríamos um projeto fraco, baseados puramente na origem. Estamos particularmente interessados nos projetos brasileiros devido às muitas portas de engajamento entre os dois países”, diz.
Tripé da resistência
O creóle, o vodu e o sistema lakou, tema da Ghetto Biennale, do Haiti, são elementos fundamentais da cultura país. Entenda:
Creóle
A língua nasceu como uma forma de comunicação entre os escravos de diferentes origens e culturas que formavam as populações das plantations na época colonial. Depois da revolta que conquistou à abolição da escravidão, em 1774, e que mais tarde levou o país a ser a primeira república negra da América Latina, em 1804, tornou-se símbolo de resistência.
Vodu
Também criada por africanos escravizados e seus descendentes, reúne práticas de diferentes religiões África com elementos do Cristianismo e tradições dos índios taínos – o povo nativo do Haiti.
Lakou
É um sistema de organização rural em que famílias se reúnem em grupos de casas ao redor de um pátio central. O modelo estabeleceu sua própria regulação da propriedade e transferência de terras e foi usado como estratégia de resistência contra o retorno das plantations.
Temática espiritual aproxima Gustavo Malucelli da Bienal
O vodu é um dos três elementos do tema da quarta edição da bienal – traduzido como “creole, vodu e ‘lakou’: formas de resistência”. A língua creole, o sistema lakou e as práticas do vodu são, de acordo com Ghetto Biennale, “um triunvirato de resistência linguística, territorial e cultural”.
Foi o que despertou a atenção do artista Gustavo Malucelli, que vem usando a religião como tema e fonte de elementos para seus trabalhos – inspirado por experiências como os dez dias que passou em um templo budista na Coreia do Sul, durante uma residência artística de seis meses no país. O Candomblé e a Umbanda também já estavam no seu radar.
“Costumo dizer que toda a minha arte se constrói ‘dentro de uma natureza alquímica e sincretista’”, diz o artista, para quem seus trabalhos, muito baseados em símbolos que ele mesmo cria, também são uma espécie de “mídia espiritual”.
“Alquímica, porque coleto um pouco de cada e dessa mistura vai saindo ideias novas. E sincretista porque é totalmente aberto para qualquer experiência espiritual”, explica Malucelli.
Ele também planeja incluir no projeto representações da imigração. “A religião foi a questão principal que me atraiu. Mas há algum tempo eu percebia a movimentação dos haitianos na cidade, e como eles são silenciosos, como as pessoas não olham para eles. Eles estão vindo para cá e ficando à margem. E ninguém entende o que eles estão fazendo”, diz Malucelli. (RRC)
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