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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Um dia você olha ao redor e tudo mudou. A vida é assim. O horizonte se altera, as verdades se relativizam, o que parecia imutável se desmancha no ar e ficam os ecos do que foi ou poderia ter sido. Quando muito.

A solução, reza o pragmatismo nosso de cada dia, é aprender a lidar com a nova configuração, entender a subtração e tocar em frente, convivendo com a falta, a entendendo e aceitando, até encontrar uma caixinha onde guardá-la no fundo de um armário, como um par de abotoaduras que você espera nunca ter de usar de novo, mas não tem coragem de jogar fora.

Mas, em algum momento, há de saturar essa história toda de aprender a se habituar com as perdas, fico cá pensando, talvez abrigado pela minha ingenuidade. Estou cansado de ouvir os mesmos lugares comuns: "Ah, faz parte da vida", "Todo mundo passa por isso", "É a ordem natural da coisas". Blá-blá-blá. Será que tem mesmo de ser assim? Sim e não.

Quando alguém (ou algo) parte de sua vida porque você assim o quis, por vontade própria ou por artimanha do destino – esse sacana! –, fica um buraco, às vezes uma cratera lunar. Nem adianta negar, que não cola! A ausência é uma forma irrefutável de presença. Mesmo quando, às vezes, é ansiada, planejada, paga em prestações. Somos muito a soma dos outros, daquilo que representam em nossas vidas, e de nossas experiências com eles, pelo bem ou pelo mal. E o vazio que deixam é, ironicamente, concretíssimo em sua imaterialidade.

No filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, de Michel Gondry, a engenhosa imaginação do roteirista Charlie Kaufman criou, ainda que no território da ficção, um serviço, na verdade uma engenhoca meio retrô e um tanto ridícula, capaz de apagar todo e qualquer rastro de uma pessoa na sua vida.

Caso existisse, iria fazer grande sucesso.

Por mais que o homem e as mulheres sejam seres históricos e, lá no fundo, a gente goste, sim, de colecionar aventuras e desventuras, até mesmo aquelas bem tristes, de assoar o nariz na manga da camisa de tanto chorar, tenho quase certeza que faria um êxito estrondoso esse dispositivo capaz de deletar todo um pacote de encrencas emocionais no qual nos metemos e que nos cutuca como pedras nos sapatos.

Ainda mais em um mundo pautado pela velocidade, que cada vez nos permite menos tempo para digerir o que nos acontece, as tais perdas, e, de certa forma, está sempre a nos dizer, com o dedo em riste: "Esqueça, vira a página, siga em frente! A fila anda!".

Só que a tal máquina de desfazer lembranças de Kaufman não existe. Nem existirá tão cedo, aposto. É fantasia pura. E também não há Rivotril, Frontal ou outra droga, legal ou ilegal, que seja capaz de desmanchar o vivido, de passar a borracha por completo nos contornos antes ocupados por algo ou alguém na trama de sua vida. Seja o amor desfeito, aquele que poderia ter sido e nunca chegou a ser, amigos que se perderam na estrada da vida. Ou a mãe que morreu antes do tempo – "morto amado nunca pára de morrer", escreveu o moçambicano Mia Couto.

Então o melhor mesmo é entender a ausência, sugá-la como um limão azedo, que também tem lá sua doçura escondida sob a adstringência, até que ela entranhe, penetre primeiro o corpo e, depois, finalmente, e em definitivo, a alma. Talvez, daí, essa falta, enfim, faça algum sentido, porque virou um pouco de você.

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