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Livro

O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo

Record. 112 páginas. R$ 30. Romance.

Arrancar beleza da aflição intensa e sentido do aniquilamento: eis o projeto vigoroso de Raimundo Carrero, que agora se materializa em O Senhor Agora Vai Mudar de Corpo (Record). A narrativa se inspira na dolorosa travessia de um AVC isquêmico, que paralisou a metade de seu corpo. Depois do golpe, que quase o derrubou, corpo e palavra parecem ocupar o mesmo lugar. E um (corpo) só se mantém de pé porque o outro (palavra) se ergue também.

Não é só o relato de uma experiência real. O novo livro de Carrero é a própria experiência que, vivida como aventura da palavra, se cristaliza em uma narrativa. "O senhor agora vai mudar de corpo", lhe disse uma cuidadora no momento em que Carrero consegue, pela primeira vez, ficar de pé. Não caminha: tomba à direita, à esquerda, é um prisioneiro da indecisão. A frase da enfermeira atravessa os ouvidos do escritor e gruda em sua mente como um alerta. Desde aquela noite de outubro, um lado de seu corpo recusa-se a se mover. Noite de que acordou "com o corpo rebelado, o lado esquerdo inativo, a perna rija, os músculos indomáveis". Acordou fora de si.

Com a escrita, Carrero promove uma segunda rebelião: insurge-se contra a negação do corpo e luta para colocar, em seu lugar, um segundo corpo. O mesmo corpo, agora sentido e dominado de maneira muito diferente. A frase da cuidadora se desdobra em uma constatação difícil: "O senhor não está nada bem hoje, não é?" Diante da pergunta, que já carrega em si uma resposta, o escritor ainda tenta ordenar as ideias e conservar a posse de si: "Eu só estou mudando de corpo, feito as cobras que mudam de pele, não foi o que você me disse?"

Lentamente, Carrero divisa um paralelo entre a doença e a escrita. Ambas o deslocam de si: a isquemia o empurra para a morte, enquanto a literatura o puxa para uma segunda vida. Aproveita-se desse elo inesperado para encaixar as duas formulações. Todo escritor corre um risco de morte – mental – no esforço de transportar-se para a esfera das palavras. Todo escritor bordeja um abismo. E a que outra coisa a isquemia levou Carrero, senão a encarar – e navegar muito lentamente em torno dele – um abismo?

Também o Recife – seu Recife – se transfigura, "agora transformado num mundo de ansiedade e espera, algo que se aproxima muito do arco de desolação que se estende no horizonte de prédios e gigantes que ocupam a paisagem inteira". Também a doença passa a ocupar todos os espaços de sua vida. Cada mínimo movimento, cada esboço de ação, cada ato, tudo remete a ela. Já não pode deixar de levá-la em conta. Transformou-se em seu próprio carrasco. Enquanto escreve (enquanto adoece?) o escritor ainda pode se amparar em imagens fortes. Delírios? Também essas figuras fazem fronteira com o perigo. O Palhaço, o Gordo, o Velho, o Magro, o Anão são personagens da cultura popular que, observados agora desde a paralisia, arremedam (ou se tornam) um mundo ameaçador. Tornam-se seus amigos, mas também seus perseguidores. "Eles não falam, nada perguntam, mas estão sempre próximos, bem próximos, pernas e mãos que se movimentam com violência".

O cotidiano se torna uma ameaça. Dar um passo, um só passo, é um grave risco. Enquanto não aceitar que mudou de corpo, enquanto não aceitar que é o mesmo homem dentro do mesmo corpo que agora já é outro corpo, enquanto não se conformar com essa ambiguidade, não conseguirá avançar. "O Escritor anda. Inquieto, triste, confuso, anda, o Escritor anda. Confere cada passada e cada gesto, porque não quer se extraviar".

Esse é o risco maior de quem adoece – de quem escreve: perder-se de si. Contudo, é disso, desse brusco deslocamento para fora do eixo, desse novo centro que se impõe, que alguma coisa deve ser feita. Ele precisa tecer, com os restos do primeiro corpo, um segundo corpo. No momento do AVC, quando a mulher lhe perguntou o que acontecia, ainda conseguiu responder: "Estou sem forças". A mulher, Marilena, o ajuda a se ver: "Você está com o rosto desfigurado e só emite sons desarticulados". Surge uma cegueira transitória. Vem o medo: não vê e não fala, como continuará a se comunicar? Como continuará a existir?

Logo recupera a visão e volta a articular palavras com uma "fala rachada". Recompõe-se, mas é tudo muito difícil: "cada palavra era como cuspir uma pedra". Não é assim, também, que se escreve? Cuspindo pedras ou, quem sabe, cuspindo fogo? A experiência pior, porém, é a do isolamento. Protesta: "Vocês estão vivendo comigo, mas não em mim. Não compreendem o que está se passando". Lembra-se vagamente de Tolstoi e de A morte de Ivan Ilitch – um pobre homem morrendo sem que a medicina possa ajudá-lo. No hospital, olhando para o teto, os olhos bem abertos para ter certeza de que continua vivo, vigia as aranhas que tramam seu destino. "Tecem a noite, tecem o tapete, ele sabe, tecem a mortalha". Ainda o medo, agora encarnado em míseros insetos.

Restam-lhe, então, a fé, que afasta a vaidade, e a memória, que lhe traz de volta o homem que já não é. "Convencido de que não era mais do que um monte de carnes, músculos e nervos inúteis, deita-se na cama, já agora e definitivamente à espera da carrocinha que o levaria para o lixão". Diante da agitação do mundo, é um vira-latas. Não pode se resignar: decide escrever. Unem-se, nessa descoberta, o místico e o artista, "ambos em busca da Beleza". Lembra-se de si mesmo, jovem, escrevendo sem pensar: "Escrevia e escrevia. Não questionava, não perguntava". A escrita, já então, como um destino.Aos poucos, as palavras o ajudam a entender que você é o que é, e não o que escolhe ser. A arte, a política, o sonho – tudo como reafirmação de si. Vem o primeiro casamento, os filhos Diego e Diogo (os nomes, todos, verdadeiros, embora a escrita seja sempre uma falsificação). Torna-se pai e decide se transformar. Mas não pode abandonar o que é. Também agora, preso nesse segundo corpo que o asfixia, já não é possível escapar. Marilena lhe oferece a única cura possível: o amor. Transfigurado no que ele mesmo é, Raimundo Carrero, enfim, nos entrega um livro aflitivo, mas verdadeiro. Que nos encoraja a existir.

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