Quem assistiu ao singular documentário “O Equilibrista” (2008), premiado no Oscar de 2009, deve se perguntar por que, depois de um trabalho tão magistral de James Marsh no retrato da façanha do funâmbulo francês Philippe Petit, através de imagens de arquivo, ficcionalização e relatos animados dos que participaram do belo ato criminoso e artístico, alguém levaria o tema para as telas novamente.
No entanto, assim como seu protagonista, Robert Zemeckis se arriscou no que, para muitos, parecia impossível e ousou fazer “A Travessia” (2015). E na sua, nem sempre tão firme, corda bamba, esticada entre a recriação do primeiro acontecimento que transformaria o World Trade Center para os nova-iorquinos e à lembrança de quem morreu no último e trágico capítulo da história das Torres Gêmeas, o consagrado cineasta se mantém de pé e transforma sua obra em um espetáculo cinematográfico único.
“A Travessia” une tecnologia e cinema em experiência única
Filme reconstitui de modo espantoso a façanha de equilibrista francês nos arranha-céus do World Trade Center, na Nova York dos anos 1970
Leia a matéria completaTrata-se, é claro, de um dos diretores mais afeitos a estripulias visuais: da trilogia “De Volta para o Futuro” (1985 a 1990) à manobra aérea de “O Voo” (2012), houve as inserções em imagens de arquivo de “Forrest Gump” (1994) e a recorrente mistura de animação e live-action no cartunesco “Uma Cilada para Roger Rabbit” (1988) e no digitalizado “Expresso Polar” (2004), entre outros.
Agora, Zemeckis inspira-se no clássico de Alfred Hitchcock, “Um Corpo Que Cai” (1958), para utilizar o máximo da técnica e dos recursos disponíveis no cinema a fim de gerar sensações psicofísicas no espectador. No caso, uma vertigem que torna a experiência de assistir ao filme em IMAX 3D imprescindível. Com uma imersão maior do que produções recentes que utilizaram a tridimensionalidade a favor da narrativa, como “Gravidade” (2013), o longa transforma o público não em mera testemunha e sim em cúmplice da ação.
Em seu primeiro ato, “A Travessia” segue como uma cinebiografia comum, apresentando Petit (Joseph Gordon-Lewitt com lentes azuis e um estranho penteado). Destaca seu lado “entertainer” de artista de rua, o início de sua paixão pelo equilibrismo, as lições de seu mentor Papa Rudy (Ben Kingsley, eficiente em seu tipo bem específico) e sua relação com Annie (a canadense Charlotte Le Bon), mais sua aliada e apoio emocional do que necessariamente sua namorada.
Contudo, há certa descontração neste início, que vai além de aspectos visuais, a exemplo da utilização do preto e branco e das fotos ganhando dimensões através da tela. Ela se debruça sobre a narração cômica de seu protagonista, agradável o suficiente para relevar o uso preguiçoso da narração em situações em que só a imagem basta.
O roteiro de Zemeckis em parceria com o novato em longas Christopher Browne não chega a entregar diálogos mais inspirados do que frases de autoajuda, mas mantém certo encanto e é extremamente sagaz em sua desculpa narrativa para o inglês ser, prioritariamente, o idioma do filme - embora o francês esteja mais presente do que o habitual numa produção de Hollywood.
Gordon-Levitt supera o desafio de parecer um francês nato, embora seu sotaque seja às vezes, um tanto exagerado quando fala inglês. Mas o ator consegue captar o entusiasmo da figura que retrata, apesar de seu egocentrismo latente.
O segundo ato imprime outro ritmo ao seguir o rumo de um filme de assalto, com toques de espionagem e humor no planejamento minucioso do crime artístico, que se iguala ao tratamento dado no documentário de Marsh e melhora a narrativa sensivelmente. Mesmo sendo muito fiel aos relatos do seu antecessor documental - na verdade, o script foi baseado em uma autobiografia de Petit - e se tratando de um feito mundialmente conhecido, mesmo passados 40 anos, Zemeckis é habilidoso na tarefa de manter a tensão no público ininterruptamente, do machucado de Petit à última gota de sangue ou suor dele.
O elenco de coadjuvantes que se apresenta no decorrer da trama, sem grandes estrelas, já que o astro aqui é a altura do WTC mais do que Philippe, evidencia a ação e a participação de cada cúmplice no ato, com destaque para os amigos franceses, o fotógrafo Jean-Louis (Clément Sibony) e o acrófobo Jean-François (César Domboy), e os aliados ianques, o malandro Jean-Pierre (James Badge Dale) e o “insider” Barry Greenhouse (Steve Valentine).
E, a partir do momento em que o plano entra em prática, com todas as suas adversidades, o longa acompanha o ponto de vista de seu protagonista, sem o público saber quais problemas a equipe da Torre Norte pode estar enfrentando, o que acentua o suspense.
Esse clima de apreensão continua no terceiro ato, com a realização da tão esperada travessia. Os efeitos especiais são um espetáculo à parte neste sentido e, fora alguns deslizes técnicos - o pássaro soa falso, por exemplo, mas como o momento tem um quê de fantasia dentro da história, releva-se isso -, trabalham em favor da realidade, recriando as Torres Gêmeas e o “skyline” de Nova York naquela manhã de 7 de agosto de 1974, em uma utilização do CG mais bela do que na criação de criaturas fantasiosas. Junto com o 3D, eles são capazes de produzir uma profundidade vertiginosa em toda a sequência.
Acima da experiência quase física que exerce no espectador, a parte final da obra revela-se mais primorosa ao atingir o nível metafórico na apreciação lírica tanto do personagem quanto do diretor ao atingir seu objetivo. Ao retomar a beleza melódica de “Für Elise” de Beethoven, o cineasta eleva seus melhores momentos dos verdadeiros 45 minutos de apresentação do equilibrista a uma ode à vida, com aspirações filosóficas sobre a travessia de cada ser humano e o desafio de sobreviver na corda bamba diária: arriscar-se, aproveitar, apreciar e reverenciar quem o ajudou neste caminho são peças-chave nesta correlação.
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