Fã de MPB e diretor de clipes musicais da geração MTV, Hugo Prata estava em busca de uma boa ideia para seu primeiro longa-metragem quando teve um ‘‘estalo’‘. Por que não adaptar para o cinema a vida de uma das maiores cantoras do Brasil? “Elis” estreia quinta-feira (24), já com importantes prêmios no currículo: os Kikitos de melhor atriz (Andréia Horta), melhor montagem e melhor filme pelo júri popular, angariados no Festival de Gramado, onde teve a sua estreia nacional em agosto.
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Seguindo a cartilha de cinebiografias tradicionais, o filme tem como ponto de partida a ascensão da gaúcha Elis Regina, com sua vinda, às vésperas da instauração da ditadura militar, ao Rio de Janeiro, onde conheceu profissionais da indústria fonográfica e provou para um público mais amplo ser dona do vozeirão que lhe abriria as portas para o sucesso. E termina no dia de sua morte (em 1982, aos 36 anos), provocada por uma overdose de cocaína e álcool. Ao todo, são 18 anos condensados em menos de duas horas de projeção - o que, como é de se esperar, exigiu sacrifícios dos roteiristas Luiz Bolognesi e Vera Egito (além do próprio Prata) na hora de escolher o que incluir e o que deixar de fora.
“Como é a primeira cinebiografia da Elis, julguei que valeria a pena fazer um recorte mais amplo, incluindo os anos de chumbo no Brasil, algo que atingiu toda a classe artística. O filme não fala só de Elis, mas também passa a limpo a nossa história”, explica o cineasta, que tentou “humanizar” a artista como uma forma de dar autenticidade à trajetória de uma figura tão conhecida. “Não dava para se ater ao mito e às vitórias dela. Todo mundo sabe que a carreira da Elis foi brilhante, mas também tiveram espinhos e fragilidades pessoais.”
A partir das coordenadas estabelecidas por Hugo Prata, Luiz Bolognesi começou a pensar no que seria a versão original do roteiro.
“Propus que o arco dramático do filme fosse a relação da Elis com os homens da sua vida”, diz o roteirista, que teve a ideia depois de ler uma carta em que o cartunista Henfil, com quem a cantora teve atritos ideológicos, faz uma espécie de mea culpa, acusando “nós, homens” de a terem matado. “Elis estava sempre tendo que se afirmar, e sofria muito por ser uma intérprete que não compunha. Ela brigou para poder mudar os rumos de sua carreira e teve embates com a indústria. Toda a tragédia dela é movida por isso.”
Caos criativo
Vera Egito (diretora do curta-metragem “Elo’‘, de 2008, cuja ação se passa em 19 de janeiro de 1982, dia da morte de Elis) deu o segundo tratamento do roteiro, quando o filme já tinha entrado em pré-produção. E cuidou de trazer, além da “humanização” da personagem pedida por Hugo, um tanto de feminilidade às cenas.
“O filme é atravessado por esses homens que a dominam e que ela superou. A Elis do filme é apaixonada, amante, mãe, uma mulher que fala absurdos. Uma personalidade sedutora, mas não no sentido estritamente sexual. Ela era a mulher de quem todo mundo queria estar perto, que hipnotiza pelo seu caos criativo, e cuja força está na sua incoerência”, diz Vera.
Para respeitar o tal “arco dramático”, Luiz Bolognesi admite ter aberto mão de muito do que a cinebiografia poderia ter em história musical.
“Não estão lá o momento em que ela revelou Gilberto Gil, Milton Nascimento ou Fagner. Nem mencionamos que naquelas fitas que ela ouvia estavam compositores como Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, que ela pensava em gravar. A nossa versão da Elis é apenas uma em 80 possíveis. Tínhamos mais medo dos fãs dela do que dos críticos musicais.”
A Elis do filme é apaixonada, amante, mãe, uma mulher que fala absurdos. Uma personalidade sedutora, mas não no sentido estritamente sexual. Ela era a mulher de quem todo mundo queria estar perto, que hipnotiza pelo seu caos criativo, e cuja força está na sua incoerência”
Hugo Prata pediu autorização aos filhos de Elis Regina (Maria Rita, João Marcelo Bôscoli e Pedro Mariano), que, segundo ele, não interferiram no conteúdo da obra (“Eles não leram o roteiro, não foram ao set e nem influenciaram a montagem”, garante). Assim, a decisão de não mostrar explicitamente na tela o uso de drogas - uma observação feita por críticos e espectadores desde a exibição do filme em Gramado e no Festival do Rio - foi puramente artística.
“O assunto está claríssimo na tela, só que ela se envolveu com drogas apenas nos últimos meses de vida. Antes disso, não há relatos. Se a trajetória dela tivesse sido semelhante à de Amy Winehouse ou Ray Charles, por exemplo, é claro que teríamos investido nesse assunto. Inclusive, em termos de cinematografia, seria ótimo, porque muitos filmes se fazem com esse tipo de conflito. Mas as drogas têm uma representatividade pequena dentro da vida da Elis. Não houve a necessidade de incluir uma cena super junkie”, afirma Prata.
Estudo minucioso
Foram necessários três meses de ensaios - oito horas por dia, cinco dias por semana - para Andréia Horta encarnar a personagem-título. A preparação foi dividida em três partes, nas quais ela ensaiou as performances para as cenas musicais; os movimentos corporais da artista; e os diálogos em si.
“Foi um estudo minucioso sobre o movimento do quadril da Elis, a sua envergadura e o seu jeito de mexer os lábios. Além disso, eu tinha em mãos um vasto material, que ia de filmagens de shows até as últimas entrevistas que ela deu”, conta Andréia.
“Elis estava sempre tendo que se afirmar, e sofria muito por ser uma intérprete que não compunha. Ela brigou para poder mudar os rumos de sua carreira e teve embates com a indústria. Toda a tragédia dela é movida por isso.”
A opção do diretor foi por usar a voz de Elis Regina: nas cenas musicais, o que se vê é a atriz dublando as gravações originais da cantora. Ficou com o maestro Otávio de Moraes (vindo da mesma cena musical paulistana de Maria Rita, Pedro Mariano e João Marcelo) a tarefa de construir uma trilha original que amarrasse as canções. Otávio é filho do arranjador Chiquinho de Moraes, que trabalhou com Roberto Carlos e com a própria Elis.
“Quando estávamos mixando o som da cena em que ela canta ‘Cinema Olympia’ [do disco ‘Ela’, de 1971], eu dei um Google e descobri que o arranjador tinha sido meu pai”, conta. “Elis cantou com os maiores músicos do Brasil, gente como Hélio Delmiro, Cesar Camargo Mariano, Nathan Marques... refleti bastante e resolvi chamar para fazer a trilha toda uma geração de músicos que era muito jovem para tocar com ela. Foi a nossa homenagem.”
Andréia Horta personifica cantora em atuação magnética
Os sonhos mais lindos sonhei... Se um arrepiômetro passasse pelo público neste momento, é provável que os ponteiros implodissem. A voz é, e será ao longo de fina seleção, de Elis Regina, mas a personificação da “maior cantora do Brasil”, para muitos, cabe à atriz Andréia Horta, em atuação magnética. Não se trata de um mimetismo detalhista de fora para dentro, mas também no sentido contrário. E essa entrega é o ponto alto de “Elis”, longa de Hugo Prata, diretor com vasta experiência em TV e videoclipes.
Sem arroubos estilísticos, trata-se de uma produção cuidada: o roteiro, parceria do diretor com Luiz Bolognesi e Vera Egito, entrelaça, com sensibilidade, o percurso pessoal/profissional da cantora gaúcha, da sua chegada ao Rio, aos 19 anos, em 1964, à sua morte por overdose, aos 36 anos, em 1982. Como pano de fundo, a cena musical da época, reduto amplamente machista, e também seus entreveros com a ditadura militar.
Fiel ao temperamento explosivo da biografada, o filme privilegia os embates com parceiros da esfera pública e privada, com ótimas atuações: Gustavo Machado mescla as ambiguidades do produtor e primeiro marido Ronaldo Bôscoli; Caco Ciocler acerta o tom como o parceiro e segundo marido César Camargo Mariano, Lúcio Mauro Filho diverte como Miéle, Julio Andrade está impecável como o dzi croquete Lennie Dale, entre outros. Os diálogos podem ser mordazes, bem-humorados, prenunciar o trágico.
A inspirada fotografia de Adrian Teijido registra alternâncias de climas e cenários - dos becos e bares mal iluminados da noite carioca à deslumbrante vista para o mar da casa da cantora, com esticadas por Paris.
Como acontece em cinebiografias, situações podem passar batidas e omissões são questionáveis, como a antológica parceria com Tom Jobim, presente apenas através de tímidos acordes de “Águas de março”. Mesmo assim, “Elis” pode configurar um reencontro emocionante com seus fãs, ou um encontro revelador para quem não a conheceu.
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