O documentário Life Itself (algo como “A própria vida”), em cartaz no serviço de streaming Netflix, retrata o crítico de cinema Roger Ebert, que morreu em 2013, vítima de câncer.
Inspirado na autobiografia do americano, o filme passa longe das lições de vida. O cineasta Steve James acompanhou os últimos meses dificílimos da vida dele, mostrando como lidou com a doença. E fez isso procurando reconstituir a carreira do crítico do Chicago Sun-Times, vencedor do prêmio Pulitzer de 1975 por seu trabalho.
Durante mais de 50 anos, ele escreveu sobre filmes e desempenhou um papel que nenhum outro crítico desempenhou antes dele (nem depois dele). Ebert tinha uma relação de proximidade com vários astros e estrelas – era próximo demais até, se você imagina que um crítico deve guardar alguma distância dos profissionais que avalia.
Todos pareciam se dar bem com ele, mesmo quando não se davam, caso de Eugene Siskel, crítico do jornal concorrente Chicago Tribune, com quem Ebert produziu e estrelou um programa popular de tevê. Os dois discutiam as estreias da semana e, com frequência, batiam boca diante das câmeras porque defendiam seus pontos de vista com veemência.
No Brasil, nunca houve uma figura assim (fico pensando em alguém para comparar, mas não lembro de ninguém), com a influência que Ebert teve.
Scorsese
O filme mostra vários momentos antológicos, um deles diz respeito a Martin Scorsese, cineasta de Touro Indomável (1980) e Taxi Driver (1976). Nos anos 80, Scorsese se debatia com drogas e chegou perto de morrer, sofrendo uma overdose. O cineasta aparece no documentário – do qual é também produtor – dizendo que Ebert o salvou no dia em que decidiu prestar uma homenagem a ele. Foi como se o tirassem do buraco. Anos mais tarde, Ebert daria uma camaçada em Scorsese pelo filme A Cor do Dinheiro (1986).
A certa altura, usando um sintetizador de voz no computador, Ebert explica que não tem medo de morrer. “Morreremos todos”, diz. O câncer o obrigou a remover o osso inteiro da mandíbula, o que alterou completamente sua fisionomia. Ele não tinha mais como comer, beber e falar sem a ajuda de máquinas. “Não perderia isso por nada. Este é meu terceiro ato e ele está sendo uma experiência e tanto.” Ebert aceitou que o câncer fazia parte de sua história. Uma boa história.
“Ele é um camarada que foi ferido brutalmente”, diz Werner Herzog, diretor de Fitzcarraldo (1982) e Aguirre – A Cólera dos Deuses (1972). A imagem feita por Herzog, em seu inglês peculiar – ele usa expressões contundentes para descrever até as coisas mais triviais –, fala de Ebert como se fosse um soldado em defesa do cinema, que foi silenciado pela vida.
Analisando agora, talvez haja, sim, uma lição de vida em Life Itself. Mais para o fim do documentário, abatido com a doença e impaciente com os tratamentos, Ebert explica de onde tira disposição para enfrentar as adversidades. Ele diz que concentra os pensamentos no trabalho, vendo filmes e escrevendo sobre eles. É emocionante ver o homem “ferido brutalmente” vibrar com a ideia de deixar o hospital para ir ao cinema, fazendo o sinal de positivo com as duas mãos – uma das marcas do programa de tevê que estrelou. Quando um filme era muito bom, ele recebia “two thumbs up” (literalmente: “dois polegares para cima”) de Ebert e Siskel.
Durante muito tempo, sem poder falar, ele manteve um blog que era imensamente popular e escrevia muito no Twitter. E é confortante saber que todo esse trabalho está disponível na internet para quem quiser ler (www.rogerebert.com).
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