Vamos começar com uma dessas histórias malucas do Bill Murray.
Há alguns anos, um cara chamado Ted Melfi teve uma ideia para um filme e queria desesperadamente que Murray o estrelasse. O problema é que Melfi nunca tinha feito um filme antes. Em um universo normal, principiantes desconhecidos não conseguem fazer com que agentes façam roteiros chegar até grandes estrelas.
Só que Murray não tem um agente. Ou um relações públicas. Ou um assistente. Ele tem um número 0800 e um correio de voz. Melfi arrancou esse número de um amigo produtor.
Ele deixou mensagens. Muitas mensagens. Então, um dia, Murray ligou. Pediu para se encontrar com Melfi no Aeroporto Internacional de Los Angeles. Eles dirigiram a esmo e comeram hambúrgueres, falaram sobre o roteiro, e então Murray deu as notícias a Melfi. Ele faria o filme. “Um Santo Vizinho” saiu em 2014, um sucesso de crítica e bilheteria.
“Devo tudo o que tenho na minha vida para além da minha saúde física a Bill Murray”, diz Melfi.
Estamos conversando pelo telefone porque estou fingindo que sua história é meu interesse principal quando, na verdade, é só um subterfúgio. Quero o número 0800. Não tenho um roteiro para vender. Tenho um artigo para escrever. No último domingo (23), Murray recebeu o Prêmio de Humor Mark Twain do Kennedy Center. Em julho, meu editor me designou para fazer seu perfil e tenho tentado contatá-lo desde então. Falar com outras celebridades a respeito de Murray tem sido fácil. Ao longo de várias semanas, entrevistei David Letterman e Howard Stern, os diretores Ivan Reitman, Wes Anderson e Sofia Coppola, seus ex-colegas de “Saturday Night Live” Dan Aykroyd e Laraine Mewman, e o roteirista do “SNL” Jim Downey. Mas nada de Billy.
Contei isso a Melfi. Também expliquei que fiquei sabendo – por meio de uma mensagem do advogado do comediante – que Murray poderia estar bravo comigo, apesar de eu não estar certo do porquê. Tinha respondido mandando um bilhete para Murray, por meio do advogado, para desfazer o mal-estar. Ainda assim, nada. Será que Melfi seria gentil de me passar o número de Murray? Ele riu.
“Há uma lei não escrita quando se trata do Bill, e todo mundo a conhece”, ele disse. “Você não deve dar o contato dele nunca. E ninguém nunca o fará.”
Há um momento de silêncio ao telefone.
“Você não precisa de Bill Murray para fazer disso um grande artigo”, diz Melfi. “‘Bill não estava disponível para esse artigo.’ Essa é a história de Bill Murray.”
Trote em David Letterman
Na verdade, há muitas histórias sobre Bill Murray.
Eis uma relatada por David Letterman.
Sexta-feira, 29 de janeiro de 1982. Letterman está nervoso. Naquele tempo, ele não é o rei aposentado da programação noturna. Ele um ex-homem do tempo com dentes separados, de Indiana e que vinha de um programa matutino cancelado. “Late Night With David Letterman” está agendado para estrear na segunda-feira. O anfitrião deixa seu escritório para gravar fora do estúdio. Enquanto ele está fora, Bill Murray, o convidado agendado para a estreia, conversa com seus roteiristas.
“Você não precisa de Bill Murray para fazer disso um grande artigo. ‘Bill não estava disponível para esse artigo.’ Essa é a história de Bill Murray.”
Quando Letterman retorna, os escritórios do “Late Night” estão com as luzes apagadas e a equipe desaparecida. A recepcionista faz um relatório.
“Primeiro, ele tirou todas as lâmpadas da sala dos roteiristas porque estava difícil se concentrar sob luz artificial”, relembra Letterman. “Então ele disse: ‘vocês sabem o que realmente precisamos fazer?’ Então Bill leva os roteiristas para beber rum. Eles disseram que beberam muito e ficaram muito bêbados e tiveram de ir para casa. E eu pensei: ‘ó, deus, o que aconteceu aqui?’”
Naquela segunda-feira, Murray irrompeu no set e começou uma hilária arenga de mentirinha contra Letterman seguida de um longo discurso de desculpas de mentirinha. Pulando de sua cadeira, ele tirou sarro da moda do aeróbico encenando “Physical” de Olivia Newton-John. Foi um modelo para futuras aparições de Murray.
“Alguém sempre viria até mim e diria: ‘temos um problema. Bill ainda não chegou’”, diz Letterman. “E a cada vez que isso acontecia eu ia aprendendo a não levar a sério. Bill nunca chegou atrasado. Nunca perdeu uma performance e estava sempre bem preparado e era sempre a melhor coisa no ano a acontecer no programa.”
Waffles e karaokê
O Prêmio Mark Twain é o mais prestigiado prêmio no campo da comédia, com ganhadores que incluem Richord Pryor, Carol Burnett, Steve Martin, Eddie Murphy e Tina Fey. Era de se imaginar que o mais recente laureado iria querer falar a respeito disso.
Não Murray. Conforme agosto vira setembro, ele permanece elusivo. Seu advogado não responde a meus e-mails ou telefonemas. Seus amigos – Melfi, Reitman, o roteirista Mitch Glazer, o produtor Fred Roos – oferecem sua simpatia, mas se recusam a atender minhas súplicas por ajuda. Não querem incomodá-lo com a insistência.
Espero ao lado do telefone. O que torna o silêncio de Murray tão frustrante é o quão fácil é rastreá-lo.
Ao longo dos meses em que tem me evitado, ele foi visto beliscando batatas fritas em um restaurante aleatório em um aeroporto, servindo bebidas em um bar no Brooklyn, puxando um grito de “América” na torcida da Copa Ryder de golfe, e torcendo pelo Chicago Cubs.
É claro, há uma grande diferença entre se sentar na arquibancada e se sentar para uma entrevista. Perfis genuínos de Murray são difíceis de se achar. Talvez o artigo mais revelador a seu respeito é lá de 1988 quando o falecido Timothy White, na New York Times Magazine, visitou Murray e sua primeira esposa, Mickey, na casa do casal às margens do rio Hudson.
Ano passado, Glazer convenceu Murray a tomar parte de seu artigo de capa para a Vanity Fair, mas “mesmo isso não foi fácil, e o conheço desde 1977.”
Ocasionalmente, como um favor para um cineasta, Murray dará entrevistas associadas a um filme que está estreando. Mas mesmo esses arranjos raramente correm como o planejado. No Festival de Cinema de Toronto para a estreia de “Um Santo Vizinho”, Melfi lembra de Murray ter desaparecido a certa altura. Em vez de fazer mais divulgação, ele tinha ido à casa de um amigo para fazer waffles.
Esse é o homem comum Murray, que invade jogos de kickball e festas de karaokê, que preferiria pegar emprestada sua bicicleta para um passeio do que se exibir no tapete vermelho. Amigos têm descrito seus sentimentos em relação ao recebimento do Prêmio Mark Twain como “ambivalentes”. E não tente falar de negócios com Bill.
“É algo que simplesmente não se faz”, diz Aykroyd. “Você fala sobre um monte de coisa e começa a introduzir o assunto, como se fosse algum tipo de venda, como se você estivesse tentando passar uma lábia, você vai se virar por um instante e lá estarão aquelas luzes de traseira. Essa é a Maserati indo embora. Vá atrás dele. Você não vai alcançá-lo.”
Piada fácil
Howard Stern se lembra da primeira vez que o percebeu. Era 1977, e Murray fora trazido para substituir Chevy Chase, uma enorme estrela, no “SNL”.
“Minha primeira reação foi: quem diabos é esse cara para vir aqui?”, diz Stern. “E então, como que do nada, ele começou a fazer aquela coisa. O cantor de bar. Ele não estava nervoso. Não estava tentando me conquistar. Mas conquistou a audiência em minutos e não parecia estar suando a camisa.”
“Nick”, como se chamava o personagem, deixava sua camisa aberta e usava um lenço no pescoço. Seus medleys podiam ir de Crystal Gayle ao tema de “Star Wars”, por John Williams, letras exageradas acrescentadas de cílios tremulantes. Nas mãos de outro ator, a piada poderia ter sido uma sátira de qualquer garanhão de bar de hotel de segunda. Com Murray, Nick se tornou não apenas perdoável como adorável.
“O personagem é tão alegre e tão sem remorso”, diz Downey. “Você acaba não sentindo pena dele. É um gosto estranho, adquirido, e tipicamente a maioria das pessoas não acha engraçada a versão ruim de algo.”
O salto de Murray do “SNL” para filmes pode parecer natural agora. John Belushi e Chase tinham feito isso antes, e muitos outros fariam depois. Mas em uma época em que a maioria dos atores jovens ficariam gratos por um papel pequeno, Murray foi duro na negociação por seu papel de protagonista em “Almôndegas”. Não se tratava do dinheiro. Reitman tinha programado as filmagens para o verão de 1978. Murray estava preocupado que fazer uma comédia de acampamento de verão fosse tomar seu tempo para jogar golfe durante as férias do “SNL”. Quando Murray finalmente concordou, contudo, apareceu para trabalhar. No primeiro dia no set, Reitman notou que o ator segurava um roteiro amarrotado.
“Até aquele momento, não tinha certeza de que ele tinha lido. A primeira coisa que disse foi: ‘isso é uma porcaria’”, diz Reitman. “A primeira cena é quando ele é apresentado aos supervisores em treinamento. Ele seguiu o roteiro, mas mudou cada um das falas.”
Murray improvisou boa parte do famoso discurso “isso simplesmente não importa” do filme, e, a certa altura, Reitman deu uma olhada de perto na cópia do roteiro em posse do ator. Ele tinha anotado as letras “SOT” em quase todas as páginas. Significava “same old thing” (a mesma coisa de sempre).
“O primeiro erro que as pessoas fazem é pensar que, porque ele é tão espontâneo e passa um ar de despreocupação, ele não se importa. Mas a verdade é que ele realmente se importa com o trabalho e é muito preciso e profissional a respeito de como se comporta”, diz Reitman. “Ele odiava caras que apelavam para o mais óbvio. Ele diria: ‘já vi isso antes. Já vi alguma versão disso antes. É a piada fácil.’”
Filosofia russa
Há um propósito na maneira como Bill Murray vive sua vida.
Aykroyd, que co-estrelou os dois primeiros filmes “Os Caça-Fantasmas”, fala da tentativa fracassada, ao longo dos anos, de convencer Murray a estrelar um terceiro. O dinheiro era bom, o estúdio apoiava e as co-estrelas o queriam. No final, Murray recusou. Ele concordou com uma aparição no remake deste ano com Melissa McCarthy e Kristen Wig.
Aykroyd cita G. I. Gurdjieff como uma forma de explicar seu amigo. Murray admira o místico russo.
“Conflito na filosofia gurdjieffiana pode servir à criatividade”, diz Aykroyd. “Billy acredita que você tem de agitar as coisas. Você não simplesmente põe suas bolas de gude contra a parede. Você vai lá e ou rebate na parede ou acerta uma bola de gude para que ela acerte outra. Do atrito vem calor e do calor vem poder criativo como uma chama.”
“O primeiro erro que as pessoas fazem é pensar que, porque ele é tão espontâneo e passa um ar de despreocupação, ele não se importa. Mas a verdade é que ele realmente se importa com o trabalho e é muito preciso e profissional a respeito de como se comporta”
Falando sobre suas improvisações públicas há dois anos, Murray pareceu fazer referência a Gurdjieff.
“Minha esperança é sempre”, disse Murray em uma entrevista agendada para divulgar “Um Santo Vizinho”, “que isso vai me fazer despertar. E se vejo alguém que está lá fora amedrontada, digo para mim mesmo: ‘OK, vou tentar fazer essa pessoa despertar’. É o que eu quero que alguém faça por mim: me desperte para valer.”
Profissionalmente, também houve “despertares”. Em 1984, ele concordou em fazer “Os Caça-Fantasmas” apenas se o estúdio o pagasse para fazer um remake de “O Fio da Navalha”, um drama baseado no livro de W. Sommerset Maugham que passa durante a Primeira Guerra Mundial. Murray interpretou o veterano da guerra Larry Darrell.
“Os Caça-Fantasmas” saiu em junho, quebrando recordes de bilheteria e levando Murray à aclamação pelo papel do docemente sarcástico Dr. Peter Venkamn. “O Fio da Navalha” saiu em outubro e foi um fracasso. Murray não conseguiu superar o fracasso comercial para participar de “Clube dos Pilantras 2”. Em vez disso, ele se mudou para Paris. Leu livros. E recusou papeis lucrativos em filmes. Não voltaria a estrelar em um filme por quatro anos até 1988 com “Os Fantasmas Contra-Atacam”.
Mesmo que “O Fio da Navalha” tivesse fracassado na bilheteria, alcançou um adolescente no Texas suburbano.
Wes Anderson pedalou sua bicicleta até uma locadora de vídeos local para alugar o filme em Betamax e assisti-lo com seus irmãos na sala de TV com as paredes cobertas de painéis de madeira da família. Larry Darrell ficou na sua cabeça.
“Era meio poético e heroico e muito triste”, Anderson escreve em um e-mail, “mas me lembro do que também pensamos: ele ainda é engraçado.”
Anos depois, Anderson pensaria sobre Darrell novamente quando estivesse escrevendo o papel de um homem de negócios com uma queda pela bebida Herman Blume. Murray concordou em ser escalado para o elenco e Anderson fez “Três É Demais”.
“É como lidar com um terrorista”
Então, por que Murray não quer falar comigo?
Por semanas, culpei Laraine Newman.
Tinha falado com a atriz e comediante, membro do elenco original do “SNL” em 22 de agosto. Não correu particularmente bem. Newman teve algumas experiências ruins com a imprensa. Comigo, ficou desconfortável com questões que achei que eram descomplicadas. Por exemplo, o que ela pensou sobre a disposição de Murray para correr um risco como “O Fio da Navalha”?
“Nunca dá para saber o que outra pessoa está pensando”, disse Newman. “Não penso que ele gostaria que ninguém descrevesse quais seus pensamentos e motivos são. Ele, de todas as pessoas, detestaria isso. Não é justo. Nada pode ser mais alienante do que ser mal representado. Mesmo que seja de uma forma positiva.”
Conversamos a respeito da amizade dos dois ao longo dos anos. Sobre como uma vez ele apareceu na sua casa com uma sacola de abacates. Sobre como Newman, anos depois, tinha passado por um fim de relacionamento difícil, e Billy apareceu, em um conversível, e eles saíram para um longo passeio que a ajudou a se sentir melhor.
Mas o que ela não me contou, até confirmar semanas depois em um telefonema, e que ela ficou desconfortável o suficiente com nossa entrevista para mandar um alerta para Murray.
Newman pegou a conversa e leu parte dela para mim pelo telefone.
Murray já estava “horrorizado”, apesar de que não pudemos determinar se isso não era por embaraço de ter sido escolhido para o Prêmio Mark Twain.
Então ele respondeu às preocupações dela a respeito de mim.
“Vou tentar matar isso”, escreveu.
A entrevista? O artigo? Minha carreira?
Ponderei isso por semanas, imaginando se a conversa de Newman era a razão porque eu não conseguia a cortesia de um retorno aos meus telefonemas por parte do advogado de Murray, David Nochimson.
Então conversei com Joel Murray. Ele é o mais novo dos nove irmãos Murray e também um ator. Ele me ouviu e então me falou para deixar para lá. Não era minha culpa. Ele suspeitava que seu irmão mais velho nunca tinha planejado encontrar comigo.
“Você não pode se castigar”, disse Joel Murray. “É como lidar com um terrorista. Eles não importam se morrerem. Ele não se importa nem um pouco com publicidade.”
Na sala de exames
Mas talvez ainda haja uma maneira de terminar isso com um ponto alto. Com outra história.
Essa vem de Letterman.
Na última primavera, Murray escreveu para Letterman para lhe dizer que estava em Nova York e adoraria encontrá-lo. Letterman deu uma olhada em sua agenda. Estava apertada. O único dia que ele tinha ao menos parcialmente aberto era um durante o qual ele tomaria vacinas para uma viagem à Índia. Ele deu o endereço a Murray.
“É como lidar com um terrorista. Eles não importam se morrerem. Ele não se importa nem um pouco com publicidade.”
“No dia seguinte estou no escritório do Dr. Hartman e estou na sala de exames de cuecas”, diz Letterman, “e lá está o Dr. Hartman, um camarada adorável, e está vestindo seu jaleco e começando a me explicar todas as diferentes coisas contra as quais vai me vacinar. De repente, há uma batida na porta da sala de exames e eu penso: ‘aposto que é um assistente ou alguém querendo tirar sangue’. ‘Oi, Bill’, digo, de cuecas. E o médico, é claro, está aturdido. Ó, Bill Murray. Então Bill entra. Estamos espremidos nós três lá. Ele começa a tagarelar com o médico sobre o que ele ia dar para mim e isso porque Bill tinha ido à Índia.”
Letterman oferece uma de suas sonoras risadas e para de contar a história.
“Foi tão maluco que estou tendo dificuldade de explicar. Eu estou de cuecas. Lá está Bill Murray e estou recebendo injeções. Isso não é normal, é? Essa é uma violação do juramento hipocrático, não? Então agora ele começa a me dar todas essas injeções, então Bill me olha de cuecas e diz: “você está puxando ferro?”
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