Eu não quero escrever sobre ele. Sobre o menino morto na praia.
Eu não tenho o que dizer sobre ele. Não consigo.
A imagem, a foto, que eu acho mesmo que ninguém vai esquecer, pra sempre, disse o que se podia. Se é que se podia.
Eu podia escrever sobre o menino. Eu ia conseguir algum efeito. Alguns likes. Ia até de repente “tocar” alguém.
Mas quem?
E mas pra quê?
Escrever sobre o menino, hoje podia ser só pra isso. Só pra você pensar que eu sou um cara legal. Profundo.
Essa coisa de escrever crônica tem esse risco. É fácil jogar pra plateia (mea culpa, mea culpa): fácil ceder a um impulso que no fundo é vão e no fundo é vil.
Um impulso, ao mesmo tempo, que pode ser a base de praticamente tudo que a gente faz com linguagem (vamos deixar só pela linguagem, por enquanto): o impulso de acreditar ter conseguido fazer você me ver. Fazer você gostar de mim.
(Eu disse que era vil. Mas quem não é.)
Tem até uns estudos que sugerem que a imensa maioria das nossas interações verbais tem como função básica algo que não tem nada de troca de informação, formação, convencimento… algo no entanto que tem muito de sedução, de jogo de atenção, de medir quanto da atenção de cada um cada um devota a cada um.
Há quem diga que jogar conversa fora, entre os humanos, ocupa o lugar do grooming dos outros primatas (aquele processo de ficar catando piolho dos pelos dos outros): a atividade social central, a que melhor define e delimita hierarquias, espaços, privilégios, afetos.
Quem eu ouço?
Por quanto tempo?
Quem me dá atenção?
E o cronista está nessa posição “privilegiada”, de estar no holofote, e precisa se conter pra não viver só disso, e só pra isso.
Eu podia falar do menino. Mas se fizesse, seria por um motivo baixo. Podre. Eu não tenho o que dizer…
*
Ontem eu cheguei de viagem. À noite eu a Sandra fomos ver televisão: um documentário sobre leões. Que acabou sendo uma das coisas mais violentas que eu já vi: guerra de gangues: assassinato: crueldade: sadismo. Ouvir o som da coluna vertebral de um leão adulto se partindo, e ver os quatro que o atacam se afastarem e ficarem deitados ao lado, enquanto ele agoniza.
*
No dia 30 de agosto, Oliver Sacks morreu.
Dizem que no fim da vida uma das únicas coisas que lhe davam prazer era Bach.
Bach faz sentido.
Bach, sim, que não fala, sempre tem o que dizer.
*
Aquela viagem, de que eu voltei ontem, foi pra participar de um colóquio de tradução literária na Federal de Santa Catarina. Um encontro extremamente fértil, cordial, agradável.
Aprendi horrores. Revi amigos. Conheci pessoas interessantes.
Mas durante várias palestras eu me pegava pensando nesses refugiados. Nessa situação de distopia literária que o mundo de fato está vivendo.
E eu ali, cavalão, discutindo métrica poética, epítetos homéricos…
E eles em botes, em balsas; eles mortos no fundo do mar.
O menino ali, estendido na praia.
No jantar de encerramento, por culpa minha, a gente acabou discutindo uma ideia que assombra as humanidades, os estudos literários. Uma ideia que decorre de uma frase de Theodor Adorno, que afirma que escrever poesia depois de Auschwitz seria impossível. Um ato de barbárie.
No mesmo encontro, no entanto, horas antes, eu discutia a obra de Primo Levi com outro colega. E Levi, que esteve em Auschwitz, é a minha melhor chance de entender aquilo. De sentir aquilo. De viver o horror e repudiar…
A nossa conclusão, à mesa do jantar, era mesmo que Adorno podia estar fundamentalmente errado. Que Auschwitz faz a gente precisar mais de poesia. Sempre.
Será?
Aquela foto, daquele menino, é necessária?
Eu vi ao menos um site que achou que precisava se explicar quando quis publicar… É um ato bárbaro? É vil?
É a “poesia” que vai me sacudir e me fazer entender (acho que sim)?
Será que se repete ali a controvérsia da fotografia de Kevin Carter, da menina famélica cercada por um abutre?
E será que é relevante que para não pouca gente a morte de Primo Levi tenha parecido um suicídio?
E que Carter tenha se matado um ano depois de ganhar o Pulitzer por aquela foto?
Será que faz sentido?
Será que a gente tem mesmo o que dizer diante do horror no mediterrâneo, na fronteira da Hungria, aqui do lado.
Diante do menino estendido na areia?
Bach.
Bach faz sentido.
Eu?
Eu não tenho o que dizer nesta semana. Desculpa.
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