Isso aí, o título, é na verdade o nome (ou era) de um filme tipo Sessão Coruja, que eu vi de fato num Corujão da Globo, numa fase da minha vida em que eu meio que tinha decidido ficar acordado o máximo que eu pudesse.
Eu li bastante. Eu vi muito filme dublado na televisão.
Hoje, no fundo, acho que o que eu tinha era uma necessidade de ficar sozinho, de ter a casa da família toda pra mim. Pode ter sido o jeito mais imbecil de manifestar isso (mas, pô, sou eu, né?), mas de repente eram sintomas de crescimento, de eu querendo uma vida pra mim.
Mas, então. Eu vi lá esse filme. Era com a Doris Day.
Eu não lembro quase nada (e não vou googlar… deixa eu viver com essa lembrança imperfeita), a não ser que eu acho que tinha uma musiquinha bacana, com o mesmo título, e que justamente o nome do filme me pegou: where were you when the lights went out. Gostei do som. Curti o “peso” das sílabas. A série de aliterações…
Era mais um jeito idiota de eu ir dando mostras do que ia fazer da vida.
E lembro também que o filme (acho que eles declaravam isso na abertura) era baseado num grande blecaute que aconteceu (em Nova York?) acho que nos anos sessenta. E acompanhava o que as personagens faziam durante aquilo tudo.
Eu gosto da Doris Day.
*
Essa semana aqui em casa a gente passou mais de seis horas sem luz, depois do ventão de quarta pra quinta. Computadores desligados, só deu pra começar a trabalhar depois das nove (meu normal é sentar aqui sete e pouquinho.. foram-se os tempos do Corujão). Fiquei lendo, antes disso.
Lendo, curiosamente, um romance (“The Crimson Petal and the White”, de Michel Faber [“Pétala Escarlate, Flor Branca”, no Brasil]) em que a personagem principal lê um texto que prevê, em 1874, um futuro eletrificado, onde o dia seria idêntico à noite. Ou seja, “um inferno”, pensa William Rackham.
Outro romance do Faber (“The Book of Strange New Things” [sem tradução no Brasil]) começa com a personagem dizendo que, apesar de ser religioso, ele tem que reconhecer que, ao olhar para a cidade de Londres toda iluminada, acha o mundo mais bonito depois das intervenções feitas pelo homem.
Eu concordaria com ele.
Mas enquanto eu ia lavando a louça do café da manhã naquela quinta-feira, ouvindo jazz numa caixinha sem-fio (a bateria) emparelhada com o meu telefone (com 60% de carga), eu olhava pela janela e pensava como o mundo ficava lindo sem a camada de luz, sem o zumbido permanente da nossa iluminação. Como era bonito, além disso, acompanhar o gradual aumento da luminosidade cinza daquele dia sem os postes tingindo tudo de uma cor de outro mundo. Do nosso mundo.
Todo mundo conhece a ideia de poluição luminosa, né?
Tem até um movimento de “cidades escuras” na Europa.
De minha parte, fiquei sabendo que isso existia em conversas com um amigo (Salve, Guerra!) interessado em astronomia, coisa de quase 30 anos atrás.
Deitados num campo de futebol vazio num clube em Almirante Tamandaré onde a gente tinha ido acampar. Vendo estrelas que em Curitiba nunca seriam visíveis.
Mas olha que cinismo, ao mesmo tempo. Eu estava ali tendo todos esses pensamentos bucólicos enquanto ouvia música baixada da Apple Music, gravada eletronicamente, distribuída digitalmente, que eu conseguia ouvir eletricamente mesmo num blecaute graças à grande mágica das baterias recarregáveis.
Mesmo antes de ouvir a geladeira voltar à vida (nossa geladeira é mais velha que o filme da Doris Day, diga-se de passagem), eu estava ainda dentro do nosso mundo elétrico. Dentro daquela bolha de civilização que qualquer blecaute sempre parece mostrar pra gente que pode, sim, ruir a qualquer momento.
Uma bolha que depende da luz.
Mas que depende, igualmente, do fio que a gente vai amarrando em todas as coisas; um fio que é feito de histórias. De filmes do Corujão, de livros.
Por mais que possa ter me entregado a devaneios pastorais, eu vi o blecaute com os olhos de um leitor.
E quando voltou a luz, eu pude voltar ao capítulo que tinha parado de traduzir na quarta à noite. Um capítulo climático de um romance (“City on Fire”, Garth Risk Hallberg) todo centrado no grande blecaute que aconteceu em Nova York em 1977.
Sério.
Sem brincadeira.
Na minha tradução, a luz de Nova York tinha acabado exatamente na quarta-feira, antes da ventania.
E a história continua…
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