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 | Ilustração: Osvalter Urbinati
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati

Enquanto a peça acontecia, ele ou ela respirava forte, em um ritmo intermitente. Quase bufava. Vez ou outra, cabeças na fila à frente olhavam de supetão com um ar reprovador, como se dissessem, com o fundo dos olhos enviesados, "me deixe assistir em paz e pare com esse barulho insuportável".

Na noite do último dia 3, no centro do palco do Teatro do Paiol, Dani Barros criava sozinha um mundinho paralelo, em que reinavam sacos de lixo e remédios tarja preta, uma capa de chuva amarela, algumas lágrimas, sujeira e poesia. Brilhantemente, a atriz interpretava a louca Estamira, catadora de lixo que tem uma percepção do mundo igualmente surpreendente e devastadora. A história é verdadeira. E também está encalacrada na vida real da atriz, que reconheceu na personagem encantadora parte da experiência pessoal que viveu ao lado de sua mãe, também doente mental crônica.

A essa altura, quando ficamos sabendo por causa de Estamira que o problema do mundo são os "espertos ao contrário", os "remédios que dopam a cabeça", os "trocadilhos da vida", quando ficamos sabendo que o que não é real também existe para alguém – ao menos para uma pessoa que tenha cogitado essa possibilidade, pois de ninguém se tolhe o desejo de sonhar –, a respiração dele ou dela, na fila F, no fundo do Teatro do Paiol, já era incessantemente rápida e ainda mais ruidosa.

Depressiva e desencantada, Estamira falava, nesse momento, que a única solução para tudo era o fogo e a morte. Que religião nenhuma, que vontade alguma era maior do que a lei natural das coisas. A "reencarnação", disse Estamira, com voz de garoa.

Fazia muito calor no Paiol quando o esbaforir que vinha da fila F cessou e deu lugar a uma agitação incompreensível, já que Estamira continuava sua pregação e o resto do teatro permanecia em silêncio. Aí se ouviu um "ai meu Deus". Um silêncio sepulcral e instantâneo foi criado quando Estamira interrompeu a sua fala e o que se viu foi um senhor preso em espasmos assustadores, com os olhos revirados. Pálido como marfim, recebia a ajuda de uma mulher, que, ao seu lado, gritava "pai, acorda, pai."

Gritaram se havia algum médico ali, e logo uma enfermeira se prontificou. Mediu o pulso, perguntaram o nome do sujeito, que ainda não tinha retomado plenamente a consciência. "Parou a peça?", disse o senhor momentos depois – já com a camisa aberta, mas ainda com olhos vidrados. Porque soou irônica, a frase suscitou risos em alguns. Enquanto isso acontecia, Estamira andava de um lado para outro do palco, preocupada.

Queriam tirar o senhor do teatro, mas ele não podia andar. Sua cor começava a voltar quando alguém ligou para uma ambulância. "Sim, ele já sofreu um enfarte," confirmou o voluntário, segurando no braço tenso do homem em apuros.

O senhor bebeu um gole d’água e enfim conseguiu sair do Paiol. "Tomar um arzinho vai ser bom", disse alguém querendo ajudar.

Estamira retomou a concentração e continuou a peça de onde parou. Falava, naquela altura, sobre os vários tipos de morte. Aquela que te cega e te encolhe. Aquela que te desanima e te tira o riso. Aquela que te deixa invisível – "sabia que na Idade Média os loucos eram colocados em uma barca e sumiam?", perguntou.

A história de Estamira serviu para lembrar que há soluções para todas essas mortes. Menos para essa uma aí, que parece não existir, mas que chega sim – ou tenta chegar – sorrateira e inofensiva na carona de uma respiração chiada.

Ao final do espetáculo a atriz Dani Barros dedicou a peça ao senhor grisalho, que foi caminhando normalmente até a ambulância que o aguardava no lado de fora do Teatro do Paiol.

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