Caminho para a fila de embarque num aeroporto da Espanha com olhos de ressaca e aquele mau humor matinal explicável. Há gentes de toda parte. Pessoas atrás de pessoas formam um cordão humano que contorna colunas. É visível o cansaço fúnebre de quem só faz viajar. Falamos sobre aviões, mas estamos todos no mesmo barco. Exceto por ela, despenteada, que maravilha, que coisa linda: a pessoa de bem.
Vem no sentido contrário da serpente-multidão, metida numa blusa vermelha em que se lê algo com letras douradas. Entorta-se para carregar três sacolas do free shop e duas malas com rodinhas. Caminha solene e desprendida enquanto passa o dedo indicador no celular gigantesco. E para ao nosso lado, ignorando quem jaz naquele périplo estacionário. Ela chegou, a pessoa de bem.
Digo em um espanhol embrumado (de onde ela é, a pessoa de bem?) que há uma fila ali, ela que se retire, por favor, que siga para o fim, como havia feito há mais de 30 minutos aquele homem de chapéu branco e andar cambaleante com cara de galego. Ao que consta, a senhora não estava grávida (ou seu filho ainda era uma sementinha do bem), não era idosa, tampouco lhe faltavam uma perna ou um braço ou um dos olhos.
O rapaz à minha frente fez que sim com a cabeça, concordou com aquele ato pseudo-heroico contra uma pessoa de bem que só queria dar um jeitinho no seu probleminha. “Por supuesto.” A senhora de trás fez gestos com as mãos, indicando para a pessoa de bem que caminho seguir, o único deles, não era tão difícil assim, nunca é.
“Me disseram para vir aqui,” argumentou a senhora furona em um português límpido. A frase saiu tão rápida quanto mentirosa, e provou que o avião partiria sim em direção ao Brasil, um país entulhado de pessoas de bem.
Há pessoas na política que se dizem cristãs e de bem, mas que não são capazes de um “opa, desculpa aí!” por um ato de guerra condenado pela Anistia Internacional. Nesta última semana, uma pessoa de bem, antigamente responsável pela segurança pública do estado, comemorou a defesa da vida de pessoas de bem com o ônus da morte de outras tantas (90 em 150 dias, 18 vítimas por mês).
Pessoas de bem também vestiram sangue nos olhos após uma campanha publicitária de O Boticário exibir casais de homens-mulheres, de homens-homens e de mulheres-mulheres comemorando o vindouro dia dos namorados (amor-amor). Porque somos um país cordial e jubiloso. De pessoas de bem.
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