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Acordo no meio da noite; depois de me esvaziar no banheiro, volto para a cama e, antes de deitar de novo, tateio o criado-mudo, pego a caneca com o resto de chá de cidreira e melissa, bebo sentindo cada gole descer pela garganta seca, ouvindo cada golada no silêncio da madrugada.

Depois acordo manhãzinha com os passarinhos e, entre um canto e outro, escuto o ressonar de Dalva no travesseiro ao lado, vejo seu semblante apaziguado, pego sua mão sabendo que, mesmo adormecida, ela me apertará a mão.

Estou cozinhando, a casa com brinquedos espalhados, e o neto chama de longe com a voz inconfundível de pedir ajuda; lá vou eu tirar o bichinho do vaso, e colocar no bidê, lavar sua bundinha e, depois, receber seu sorriso e mais um "obrigado, vô", cada vez mais precioso porque mais perto do dia em que ele não me chamará mais...

Atendo o telefone e uma voz doce e amável me diz que é da Empresa Tal, e que precisa falar comigo sobre um assunto de meu interesse, e eu, em vez de, como fazia antes, dizer irritado que não atendo telemarketing, com voz doce e amável digo "um momento, por favor", e deixo o telefone fora do gancho, voltando a almoçar tranquilamente...

Estamos caminhando pelo vale, Dalva e eu, no dia seco de céu azul, a estradinha de terra com camada de poeira fina, e vem um carro que, já vemos de longe, diminui a marcha, passa devagar para não levantar poeira, e o motorista nos cumprimenta, desconhecido e amigo, e devolvemos o aceno com sorrisos, e o dia fica mais azul e o vale mais bonito.

Depois continuamos caminhando e lá vem caminhonetona com vidros escuros, passa levantando poeirão; então paramos, fechando os olhos e cobrindo o nariz com a gola, até o poeirão assentar, aí trocamos um olhar e rimos, e continuamos sem aceitar que o dia fique menos azul e menos bonito.

Viajamos ouvindo música no carro até que enjoamos, aí um de nós desliga o som, e eu vou ouvindo o silêncio dela, ela vai ouvindo o meu, e os silêncios se casam tão silenciosamente que o carro ronca concordando que sim, silêncio é o melhor som.

Ligo a tevê e um filme está começando, e, além de grátis, é um filme bom!

Todo dia, levanto e vou pegar o jornal no jardim mas, antes, corto em três um pãozinho integral caseiro, para dar um pedaço a cada cachorro, e eles recebem esse simples agrado com tanta alegria!

Pego o jornal, tiro da capa plástica e deparo com uma notícia boa!

Faço almoço no sábado para a família reunida, e os netos ficam rodando com triciclos em volta da mesa oval da cozinha, e, quando tenho de ir à geladeira, buzino com a boca e eles param, me abrindo caminho, e, quando volto para a pia, retomam o circuito oval com mais empenho que Ayrton Senna.

Toca o telefone, atendo e é Dalva dizendo oi, vou chegar tarde pro almoço, almoce, mas antes saiba que te amo, viu, e resolvo então esperar por ela, e, quando ela chega e vê que não almocei ainda, me dá um beijo com os olhos brilhando tanto que até esqueço a fome.

A campainha toca, vou atender e é a mulher das pamonhas, digo que hoje vamos querer uma doce e três salgadas, e ela abre um sorriso mistura de alegria com gratidão, enquanto penso ah, dona, se a senhora soubesse que as pamonhas salgadas nós damos para os cachorros, e até eles estão enjoando, mas continuo comprando esse teu sorriso...

Deito e lembro de minha mãe e recito "com Deus me deito / com Deus me levanto / com a graça de Deus / e do Espírito Santo", e durmo que só vendo, é um santo remédio para insônia.

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