O asfalto esfarela no bairro, as enxurradas trazem para a rua diante da chácara. Vou varrer os pedriscos, ouço uma voz: – Ei, moço!

CARREGANDO :)

Passando dos sessenta, a gente gosta quando chamam de moço... É uma mulher de seus sessenta também, desconfiada:

– O senhor é da prefeitura? Vai ponhá onde essa coiseira? Digo que não sou da prefeitura, ela se espanta:

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– Como não? Tá de uniforme, ué!

Digo que é o macacão com que lido na chácara, moro em frente. Ela continua espantada:

– Mas pru que o senhor tá fazendo isso?

Digo que é para evitar entupimento dos bueiros. Ela pisca confusa, até abrir um sorriso matreiro:

– Mas... tá ganhando desconto no IPTU? Vinte por cento?

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Digo que estou ganhando cem por cento, ela arregala os olhos e a boca se abre de espanto, até que consegue falar:

– Cem por cento?! Cumé que ninguém mais daqui ganha?!

Digo que ganho cem por cento da satisfação de fazer algo pela rua, ganho cidadania. Ela estreita os olhinhos com uma desconfiança que enfim sibila:

– Cumé quié?

– Cidadania, senhora. Fazer coisas pelo bairro, sem qualquer pagamento ou ressarcimento.

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Ela fica me olhando como se eu fosse um bicho estranho brotado do asfalto, até que balbucia:

– O senhor fala cada palavrão, hem?

Chacoalha a cabeça, como se ajeitando os pensamentos, e os olhos voltam a se estreitar matreiros.

– Mas vai fazer o que com essa coiseira dispois? Vai vender ou usar em casa memo?

Digo que vou jogar nos buracos da minha cachorra, que tem mania de cavocar. Então o olhar dela faisca, a cabeça balançando, e nem é preciso que fale o que está pensando, "ele está ganhando com isso, ah, o danado tá ganhando!..."

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Continuo a varrer, e enfim ela fala:

– Vai dar quase uma carroçada de pedrinha, hem...

Sim, digo, recolherei duas ou três carriolas, evitando também o atrito dos pedriscos pelos pneus, aumentando a vida útil do asfalto. Mas ela está interessada é no que vou ganhar:

– Uma carroçada dessas deve custar quanto será? Dá pra fazer muita massa, né? O senhor tá fazendo reforma?...

Digo que, se quisesse pedriscos para massa, compraria, pois viriam limpos, sem areia, cocô de cachorro, papéis, cigarros e tudo mais que o povo porco joga na rua.

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Agora ela me olha como se eu fosse bicho perigoso, até afasta um passo. Então té-logo, diz medindo com o olhar a carriola cheia.

Levo a carriola para a chácara, aí não resisto olhar pela fresta do portão. Lá está ela, falando com uma vizinha de vassoura na mão, que sempre joga no bueiro as folhas varridas. Ela fala apontando a rua já limpa, a chácara, e enfim faz aquela cara matreira esfregando os dedos indicador e polegar, certamente dizendo que estou ganhando muito dinheiro com as pedrinhas...

Penso na cantiga infantil: "se esta rua, se esta rua fosse minha..."