Livro
Estive Lá Fora
Ronaldo Correia de Brito. Alfaguara, 295 págs., R$ 44,90.
Chego ao capítulo nono de Estive Lá Fora, o novo romance de Ronaldo Correia de Brito (Alfaguara). Chego ao que, como leitor viajante, desde as primeiras páginas do livro, sem saber, eu perseguia. Quando se aproxima de uma ficção, todo leitor mesmo que não saiba disso, mesmo que o negue - procura uma chave que o ajude a entrar no livro que lê. Pois encontrei minha chave: ela está no capítulo "Sonhos de Cirilo". Com ela, posso abrir um caminho pessoal em meio à densa narrativa. E, assim, tomar posse do que leio. Um leitor é isso: alguém que se apossa de um livro. Que faz do texto alheio, seu texto. Que nele rasga uma segunda assinatura.
Protagonista do livro, o jovem Cirilo é um estudante de medicina no Recife que, para sobreviver, dá aulas no Sindicato dos Portuários. Na Casa do Estudante Universitário, divide um quarto obscuro com três amigos, Álvaro, Leonardo e Carlos. Veio do interior do Ceará, partiu quatro anos depois do irmão mais velho, Geraldo, que, envolvido na luta política, desapareceu. Estamos na década de 1960. A ditadura militar semeia o medo que, ultrapassando a repressão política, se infiltra nos vãos do cotidiano. É nessa atmosfera ambígua de insegurança e esperança que Cirilo luta para chegar a si. E, também, ao irmão desaparecido.
No início do romance, encontramos Cirilo debruçado sobre a murada de uma ponte do rio Capibaribe, decidido ao suicídio. Duplicando a imagem antiga do tio João Domísio, cujo corpo, crivado de balas, foi arrastado pela enchente de outro rio, o Jaguaribe, ele vê a si mesmo, sem vida, flutuando no lodaçal. "Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos infames do Recife, em meio ao lixo". O sol do Recife, em vez de iluminar, cega. Cirilo deseja "evadir-se para fora da luz". Luz infernal, implacável, como suportá-la?
No capítulo nono ali onde encontro minha chave Cirilo relata três sonhos. No primeiro, um desconhecido lhe sopra no ouvido duas sentenças. Deve escolher uma delas. Ao fazer sua escolha, solta um gemido forte, que acorda os companheiros de quarto. O próprio Cirilo desperta, mas a sonolência o impede de anotar as revelações contidas nas duas frases e de registrar a escolha que fez. Na manhã seguinte, das duas sentenças restam só imagens vagas, que não chegam a compor um significado.
Nove noites depois, Cirilo tem um segundo sonho. Retorna à casa dos pais, em Inhamuns, quando se depara com um cego, que folheia um livro aberto entre as pernas. O livro não tem frases, apenas mapas do sertão. Neles, desmentindo a realidade, o sertão é farto em rios. Cirilo consulta o cego a respeito de passagens obscuras de sua vida. Ouve o que ele tem a dizer, mas, uma vez mais, se esquece do que ouve. De novo, da longa travessia, sobra um esquecimento.
Há, ainda no mesmo capítulo, um terceiro sonho. Nele, Cirilo, acompanhado da namorada Paula, está em uma festa. Entre eles, surge um rapaz, chamado Mário. "Imagino que tem alguma coisa a ver com mar e rio", pensa. Outra vez, as águas estão onde não deveriam estar. Talvez o próprio Cirilo, que foi incapaz de lançar-se no Capibaribe, esteja deslocado de seu próprio lugar. Nada pode saber: seu destino é feito de desvios. Experiências perdidas para sempre.
No Recife, entre o trabalho monótono e os estudos, o rapaz julga procurar a si mesmo. Sem afastar a imagem do irmão Geraldo, acredita, também, que o persegue. Escondidas sob essas duas explicações, uma longa série de rombos sustenta sua existência. Não pode saber quem é porque nunca é o mesmo homem. Está sempre fora (de si). Nas cartas que escreve à mãe, expressa a angústia diante desse contínuo deslocamento. Dor que também não pode solucionar, mas só reinventar.
No capítulo nono de Estive Lá Fora, o dos três sonhos, Ronaldo Correia de Brito me entrega uma chave (a minha chave) para sua narrativa. Desde que chegou ao Recife, Cirilo se perde em uma longa cadeia de experiências, que não combinam entre si, tampouco desenham o mesmo homem. Elas, porém, o fazem viver. Deseja reencontrar Geraldo, mas teme que o reencontro se transforme em um desencontro marcado pela incompreensão. Do alto da ponte do Capibaribe, o rapaz observa os caranguejos que se limitam a viver, sem esperar da vida qualquer sentido.
Talvez seja o excesso de expectativas, e não só as agressões físicas que sofre na faculdade, que o massacrem. "Os colegas não perdoam seus cabelos grandes, a calça baixa mostrando os pentelhos, a camisa curta, o ar de desprezo pela turma". Contudo, Cirilo não está só deslocado dos outros; sente-se em desacordo consigo mesmo. Quando o enxotam igual a um cachorro, é ele mesmo seu carrasco.
Alvaro, seu amigo, é um leitor incansável do poeta recifense Carlos Pena Filho (1929-1960), morto precocemente em um acidente de trânsito. Os poemas de Carlos, como goteiras líricas, se infiltram no romance de Ronaldo. Nas paredes do Bar Savoy, Cirilo depara com alguns de seus versos: "São trinta copos de chope,/ são trinta homens sentados,/ trezentos desejos presos,/ mais de mil sonhos frustrados". Falam de tudo o que esquecemos mas, ainda assim, nos move. Falam dos sonhos perdidos de Cirilo, mais "verdadeiros" do que os atos concretos que pode recordar.
Levam-me a pensar que, sob a narrativa precisa e elegante de Ronaldo, devo buscar outros rios que, em segredo, sustentam minha leitura. Todo leitor é um detetive impotente, que não chega a decifrar o enigma que tem diante de si. Essa condição fraturada do leitor me leva, de volta, ao terceiro sonho de Cirilo. Abandonado pela namorada, Cirilo chega a uma casa habitada por doentes de paralisia cerebral. Sabe sem saber como sabe que eles são nove, embora não estejam todos ali. Apesar da doença, novo enigma, as pessoas são saudáveis e belas. Delas se aproxima. "Tenho uma pergunta a formular, porém desperto". Como no sonho de Cirilo, também as melhores ficções nos deixam sem fala. Minhas perguntas não funcionam minha chave emperra e o livro de Ronaldo se agiganta.
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