Contos
O Explicador
Leonardo Villa-Forte. Oito e Meio, R$ 38.
Por que os escritores preferem se ausentar do real e se entregar ao mundo distante embora paradoxalmente próximo da ficção? Essa ausência costuma ser motivo de desconfiança. De graves suspeitas. Desde a ideia banal de que os escritores vivem "no mundo da lua", muito se pergunta a respeito de sua ausência na rotina do dia a dia. Escritores são obrigados a ouvir perguntas inúteis assim: "Em que você está pensando?" Ou: "Por onde anda sua cabeça?" Ou ainda: "Você está mesmo aqui?" Presos do lado de fora, buscamos as razões de seu alheamento. Procuramos uma explicação que justifique sua atração pelo inexistente e seu consequente afastamento do que, sem outras palavras, chamamos de realidade.
De alguma forma, uma resposta para essa questão se esboça em O Explicador, conto que empresta seu título ao novo livro de Leonardo Villa-Forte (Editora Oito e Meio). Se não se esboça, pelo menos se expõe. Os contos de Leonardo guardam uma sutil reflexão a respeito da própria literatura. Em O Explicador, contudo, ela assume um caráter mais contundente. Um homem tem o hábito "de se fazer ausente exatamente nas ocasiões em que sua presença era esperada". Ali onde ele deveria estar, não está. Sua figura esmaecida escapa para zonas imaginárias e nelas se refugia. De que foge? Por que foge? Será que foge ou, ao contrário, enfim chega? Sua atitude, de fato, ameaça. Seria o mundo concreto tão desinteressante?
Um grupo de homens se reúne atrás de uma mesa para discutir as motivações dessa ausência. Para tentar justificá-la. Para chegar à grande explicação. Um deles, que ocupa o papel de explicador, cheio de rodeios e de preâmbulos, inicia sua fala. Começa evocando sabe-se lá por que os primórdios do cinema. Não passa de um preâmbulo com que pretende atrair a atenção de seus ouvintes. Surgem, já aí, os primeiros desentendimentos. Um homem magro e de costeletas se põe a resmungar. Um segundo ouvinte, careca e de bigodes, protesta contra as palavras do homem magro. A desavença aumenta. Em luta para colocar uma ordem nos debates, o explicador explica seu papel: "Estou fazendo uma explanação das motivações que levam uma pessoa a nunca comparecer a eventos aos quais é convidada". Quanto mais explica, contudo, mais seus ouvintes se confundem.
Acrescenta ainda o explicador que, falando do homem que nunca comparece aos eventos em que é esperado, ele fala "de todos e de cada um dos homens". As reações, logo, se tornam mais fortes. Quanto mais o explicador fala quanto mais ele explica menos explica. É, também, o que se passa com a literatura, que não se deixa conter em um único motivo. Não existem as relações mecânicas que, para nos consolar, tanto buscamos. Fracassam os sistemas que lutam para impor uma ordem no que não se ordena. Frustram-se os conjuntos, as classificações, as naturezas. Não há natureza na literatura ela é, antes de tudo, antinatural. Logo, não existe uma regra, ou um manual, que dê conta de seu funcionamento. Não há uma explicação que a esgote. Nada e o difícil é suportar isso.
Resta a nós, inquietos leitores, avançar na leitura, aceitando todo o tempo a visão turva, as noções parciais, as precárias suposições que a ficção nos fornece. Justifica o personagem de Leonardo Villa-Forte: "Falo de todos os homens que não vivem de acordo completo com as demandas da sociedade". Eis os escritores: eles estão, quase sempre, em desacordo com o mundo. Em desarmonia com os outros e consigo mesmos e só por isso, só porque escapam e destoam, conseguem escrever ficções. Logo alguém protesta: "Está dizendo que um homem deve ignorar as necessidades da sociedade?" Insiste o explicador que não está fazendo pregações, que "busca apenas uma explicação sobre as razões para um homem não estar onde é requisitado". Insiste em delimitar seu papel que seus desconfiados ouvintes teimam em desmantelar.
Logo a plateia começa a fazer pouco de seu desejo de explicação. "Mas de que homem o senhor está falando?", pergunta um sujeito de cartola. O explicador se intimida e vacila. Será o explicador um farsante? os ouvintes se perguntam. O explicador reage furioso: "Querem ou não querem que eu explique os motivos dele não vir quando é chamado?" Diante da instabilidade da vida não estar onde se é esperado a prepotência do explicador se desmascara. Alguém ainda tenta defendê-lo. Mas o desejo de uma explicação logo se mostra inútil. Mais um pouco, e toda a plateia se une contra o explicador. Os homens se postaram atrás de uma mesa para ouvir uma explicação; mas, quando ela apenas se esboça, eles a rechaçam.
"Onde você é esperado, é aí que está o perigo", conclui, enfim o explicador. Mas que perigo? É ali, onde o aguardam onde o enquadram que você corre o grande risco de ser tomado por quem não é. Espera-se um homem comum você passa por ali distraído e logo lhe enfiam a carapuça. Espera-se um homem iludido e, se você bobear, logo será eleito para esse papel. Melhor então não estar onde o esperam. Melhor deslocar-se. Exatamente como fazem os escritores, dando dribles desconcertantes, desviando-se abruptamente, divergindo sempre que possível. Não se consegue pegar um escritor. Nenhuma explicação dá conta de sua literatura. O perigo é que uma explicação lhe seja atribuída à força, lhe seja impingida. Isso a explicação definitiva mata qualquer ficção. Mata qualquer homem. Eis o perigo de que fala o explicador: o de ser catalogado. O de que lhe destinem, à força, um destino.
O forte conto de Leonardo Villa-Forte nos fala, enfim, das dificuldades de existir e dos perigos que ameaçam uma existência verdadeira. Uma explicação ainda que aponte esse perigo pode sufocar e anular. Por isso os homens que se postam atrás da mesa não se entendem: eles esperam a libertação ali mesmo onde um carrasco os aguarda. Melhor esquecer as explicações fixas, os sistemas fechados e as naturezas. Melhor limitar-se a ser o que se é. Assim trabalham os escritores: em voos solitários, agindo por sua conta e risco, apostando naquilo que é só seu. E sem esperar explicação alguma para o que fazem.
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