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Poesia

A Fio

Marcelo Sandmann. 7Letras, 68 págs., R$ 37.

Em Invenção de Orfeu, o poeta Jorge de Lima (1895-1953) nos fala das "travessias nunca projetadas,/ sem roteiros, sem mapas e astrolábios/ e sem a carta a El-Rei contando a viagem". Aventuras tão ímpares que sequer conseguimos narrar, pois elas não cabem nas palavras. Não são frutos de um projeto, mas de um destino. Não seguem em linha reta, mas — sinuosas — vacilam e trepidam como se não se dirigissem a lugar algum. Lembrei-me desses versos de Jorge de Lima — que ouvi, outro dia, na voz de Elisa Lucinda — enquanto lia "A Fio", poema de Marcelo Sandmann que fecha seu livro homônimo (Editora 7Letras). O poema foi musicado pela banda Fato, de Curitiba, e interpretado por Lenine.

"Um homem pra poder de fato ser um homem/ Segue seguro/ Em linha reta", o poeta nos propõe, seguindo a tradição. Contudo, a realidade se define justamente pelo estrago da tradição e por sua desfiguração. O poeta sabe disso e se pergunta: "Mas qual caminho/ Afinal/ Que corre claro/ Reto/ Estrada a fio sem desvios?" Trata-se de uma experiência conhecida não só pelos poetas, mas pelos homens comuns. Planejamos uma coisa, e fazemos outra. Projetamos um dia, e vivemos outro. Por isso, o importante é o poeta se conservar aferrado a si. Em meio às intempéries, ele é seu centro. Frágil, assustado — por um fio —, mas resistente. Só se torna poeta quem não se afasta de si.

Para enfrentar um mundo tonto e cheio de desvios, é preciso, antes de tudo, coragem. Diz Jorge de Lima: "Contemos uma história./ Mas que história?/ A história mal dormida de uma viagem". Daí a insônia, e certa dose de sonambulismo, sempre presentes na escrita poética. Escreve Marcelo: "Um homem pra poder de fato ser um homem/ Segue sozinho/ Segue sem trégua". Apesar dos desvios e tropeços, mantém o controle de si mesmo. Sim: controle frágil, exposto a ataques e sempre questionado — mas, ainda assim, poder. Escreve o poeta, em versos dedicados ao prosador Cristovão Tezza, "Poesia versus prosa": "Um bom poeta é feito/ tiro de misericórdia". Fixa-se em si mesmo, vai direto ao ponto, "não tortura seu leitor/ como faz o prosador". Trêmula, inconstante, precária, a poesia, ainda assim, mira um destino. Pode errar, e erra. Pode perder-se — e quase sempre isso acontece. Mas mantém em vista um alvo e para ele, e em seu nome, existe.

"Dançamos um tango/ à beira do abismo", descreve Marcelo, apontando um cenário no qual o risco extremo não exclui, ao contrário abre caminho para a arte. Há no poeta "um sol/ que brilha por dentro", e é ele que o sustenta e conserva de pé. Esse fio interior, delicado — fio por um fio — conserva o poeta, apesar da desordem que o cerca e que é obrigado a atravessar, preso a seu destino. "Há um sol/ no fundo do corpo,/ lúcido, noite adentro". Essa luz não só o alimenta, não é só algo que ele devora — essa luz é a própria poesia, claridade vaga e desprotegida, que persevera adiante.

"Aprendi a respirar debaixo d’água", escreve Marcelo Sandmann. "Meus dedos são algas/ e enchem de luz/ o dorso da piscina". O poeta é um resistente: sobrevive ali onde parece destinado a morrer. E, mesmo asfixiado — mesmo sobrevivendo apenas de seu próprio ar —, ele ainda tem forças para iluminar o mundo ao redor. É com uma sensação de desequilíbrio que leio os poemas de Marcelo. Em minha poltrona, protegido pela luz frágil do abajur, alguma coisa me sacode e me empurra. Mesmo parado em meu canto, os poemas me agitam. Eles me defrontam com a potência da poesia. Na leitura, eu me duplico — sou um segundo Marcelo. Descreve o poeta: "Sou um homem triste, esquivo, preso/ (...)/ enchendo a cidade de sombras,/ dióxido de carbono/ e versos imperdoáveis". Algo assim também sou.

Poemas se sujam com as interferências do mundo. Em "Aspirador de pó", numa quebra repentina e entre parêntesis, surgem versos que desviam o poema de sua rota. Reflete Marcelo: "Você vai me perguntar/ o que é que a estrofe acima/ tem a ver com tudo isso./ E eu vou responder que não sei". Mesmo fiel a si, o poeta está exposto a intromissões e imprevistos, que o abalam e cujas razões ele ignora. "Não é fácil manter o poema/ bem limpinho", ele conclui. Escrever é contaminar-se. Quando você faz poesia, tudo pode acontecer. "É preciso sair/ da zona de conforto./ Um soneto pode ter trezentos versos./ Um poema concreto,/ desabar como uma marquise". Sabe Marcelo que "a realidade é um exagero constante". E é por isso que o poeta deve se manter fiel a sua luz interior. Apesar dos versos, que o empurram para lá e para cá, ele continua vivo. "E vivo, apesar de ter nascido". Nascer é perder-se.

Daí a necessidade que o poeta sente — que qualquer pessoa sente — de limpar-se dos excessos da realidade para se fixar em si mesmo. Escreve Marcelo, consciente da conveniência de ficar com o essencial: "Menos./ Eu quero menos./ (Menos que menos.)". Escreve versos curtos e afiados, consciente dessa estética do mínimo. "Somente o mínimo, o ínfimo", ele insiste. "Talvez nem mesmo,/ por exagero/ o pingo no/ i". Descartar os excessos e retornar ao centro: eis a escrita. A estética do corte e da exclusão — não posso deixar de pensar, aqui, em João Cabral e sua faca — conecta o poeta com essa luz de dentro que, de outra maneira, se dissolveria nos fenômenos do real.

"Pois eu, quando escrevo/ (se me atrevo),/ bebo meio gole d’água", diz, contrapondo-se aos poetas que precisam de um vinho tinto para escrever e de um vinho branco para rever. Basta-lhe esse mínimo — o gole d’água — para suportar os elementos que o assaltam: a bifurcação, a controvérsia, o ensimesmamento, o jogo frenético, o tempo — como enumera em seu "Abecedário". Só assim, resistindo aos ataques do real, o poeta chega àquilo mesmo que o constitui: "E então viver/ como se quer/ sem mais fingir". Propósito que se desdobra assim: "E então viver/ como quem se quer/ sem mais mentir". Aceita, enfim, as turbulências da realidade: "Razões não vão zerar as desrazões". Aferrado a si, e aceitando o soco que o atravessa, o poeta dispõe, enfim, de forças para desafiar o mundo. Escreve: "Beijo a boca da lua./ Caminho sobre o abismo". Atravessa, mas não cai. Por quê? Porque continua a escrever.Dê sua opiniãoO que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.

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