O escritor espanhol Miguel de Unamuno (1864-1936) preferia chamar seus romances não de "novelas", como se diz em espanhol, mas de "nivolas" deformação que inventou para assinalar o caráter nublado das ficções. Marcou, assim, firme posição contra o romance realista, que dominou a literatura espanhola na virada do século 19 para o século 20. A denominação, "nivola", surge pela primeira vez em Névoa, romance que ganha agora uma edição brasileira, em tradução de Fabiano Calixto (Estação Liberdade).
Névoa conta a história do melancólico Augusto Pérez e de sua paixão pela fugidia Eugenia. Paixão ou ilusão? Para Unamuno, são palavras sinônimas. Não acreditava em paixão sem ilusão. Tampouco considerava possível a ilusão sem paixão. Ambas se caracterizam pela turvação dos sentidos. Ainda assim, dizia, a paixão é o único remédio eficaz contra o tédio. Único instrumento, mesmo imaginário, capaz de perfurar a névoa da existência.
Apaixonado, Augusto Pérez, o protagonista de Névoa, duvida, porém, do que sente. "De onde brotou Eugenia? Ela é uma criação minha ou sou uma criação dela?" Dissolve-se, assim, na figura da amada. Pensava Unamuno que a existência está imersa na névoa, porque impregnada na ficção. Nas longas conversas que tem com seu cachorro, Orfeu, o personagem Augusto Pérez admite que, muitas vezes, é tomado pelo sentimento de inexistência. "Caminhava pela rua figurando muito que os demais não me viam", monologa. "E noutras vezes fantasiei que não me viam como eu me via". Existia mesmo?
Para Pérez, as ficções (ilusões) alimentam a existência. Elas são uma arma contra a névoa do aborrecimento. Contra o tédio. Para enfrentá-lo, nos apaixonamos, isto é, nos iludimos. Sim, vivemos em um mundo físico. Mas é a névoa, e não a carne, que nos torna humanos. Augusto Pérez compara a vida a um tear que se move inutilmente, pois está desprovido de um tecido. "Olha como se movem os pedais do tear, mas me diz onde está o carretel, onde se enovela o tecido de nossa existência, onde?", ele se pergunta. Procura, e não acha.
O próprio romance, Névoa, nos chega encoberto por uma densa neblina de conjeturas. O livro traz três prólogos que, em vez de o iluminarem, o obscurecem. O primeiro, assinado por certo Víctor Goti, é escrito a contragosto. O próprio Goti nos diz: "Dom Miguel de Unamuno insiste que eu escreva um prólogo a este seu livro que relata a tão lamentável história de meu bom amigo Augusto Pérez e sua misteriosa morte". Sua declaração assinala a interferência alarmante que a ficção promove no real. O próprio apresentador, logo depois, assume sua condição dupla de personagem. Explica: "Estou pelo menos firmemente persuadido de que careço disso que os psicólogos chamam de livre arbítrio, ainda que eu creia, para meu consolo, que tampouco goze dele dom Miguel". Também os escritores, como seus personagens, são feitos de ilusões (ficções). A existência não passa de uma névoa espessa.
Ainda intrigado, busco na web algum indício da existência real de Victor Goti. Esbarro, então, em uma nota de obituário. Victor Goti faleceu no último dia 10 de julho, em West Chicago, aos 46 anos. Um segundo Goti, portanto, incompatível com o primeiro. Há, ainda, um segundo prólogo, batizado "Pós-prólogo" e assinado por "M. de U." (Miguel de Unamuno?), em que o autor reclama das inconfidências de Goti no prólogo de abertura. Enfurecido, ele ameaça assassinar seu prefaciador: "Se me irrita muito, acabarei fazendo com ele o que fiz com seu amigo Pérez, e é que o deixarei morrer, ou o matarei". Por fim, no terceiro prólogo, o "Prólogo à terceira edição", este não assinado, mas apenas datado do ano de 1935, o autor se refere à primeira edição de seu livro, de 1914, que foi logo envolvida "pela trapaça e pelos trapaceiros". Reclama: "Parece que há outra segunda, de 1928, mas dela não tenho mais que notícia bibliográfica. Nunca a vi". Dissolvidos na grande nuvem das leituras, seus escritos já não lhe pertencem.
O autor deste terceiro prólogo recorda, ainda, uma história (verdadeira ou falsa?) de seu neto, Miguelín, que certo dia lhe perguntou se o famoso Gato Félix o dos quadrinhos , como nós humanos, também é feito de carne. Ocorreu ao avô, em má hora, responder que Félix não passa de "um sonho". O sábio menino não se dá por vencido: "Mas sonho de carne?" Também o autor (Unamuno, ele mesmo?), em vez de pensar que o criou, prefere dizer que "sonhou" seu personagem, Augusto Pérez. E o prendeu em sua "nivola" esta, sim, uma diabólica invenção, criada só "para intrigar os críticos". Que eles suportem as trevas filosóficas em que são lançados! Unamuno, tanto quanto Pérez, sempre se interessou pela filosofia, que julgava, no entanto, muito mais potente nas mãos dos poetas do que dos filósofos.
Apaixonado (iludido) pela figura de Miguel de Cervantes, Unamuno se inspirou na Dulcinéia, do Quixote, para criar sua Eugenia. Mas não são apenas personagens alheios que invadem sua escrita. Seus próprios personagens o invadem também. No fecho de Névoa, um exausto Augusto Pérez resolve acertar contas com seu autor, Miguel de Unamuno. Ofendido, Unamuno decide simplesmente matá-lo, o que efetivamente faz. Com isso, ficção e real se diluem, em definitivo, em um grande pântano. Abre assim o último capítulo: "Quando recebi o telegrama comunicando a morte do pobre Augusto, e soube logo de todas as circunstâncias dela, fiquei pensando se fiz ou não bem em lhe dizer o que disse naquela tarde em que veio me visitar e consultar comigo seu propósito de se suicidar. E até me arrependi de tê-lo matado". Em um contragolpe, a ficção desafia quem a escreveu.
Para tornar tudo mais turvo, o romance termina com uma "Oração fúnebre em forma de epílogo", em que se relata a morte do cão Orfeu. Como uma sombra (uma cerração), seu corpo jaz aos pés do cadáver de Pérez, "como ele envolto na névoa tenebrosa". Este epílogo não traz uma assinatura. O que nos autoriza a cogitar se não é a própria névoa que, desprezando a presença de um autor, enfim, sozinha e por sua conta, nos toma a palavra.
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