Contos
Três Novelas Femininas Stefan Zweig. Tradução de Raquel Abi-Sâmara e Adriana Lisboa. Zahar, R$ 36,90.
Não é fácil aceitar o medo. Não é nada fácil desafiá-lo. Como tudo na vida, ele tem muitas faces. Diante de temores intensos, ainda que infundados, a mente se põe a trabalhar. Ela se torna mais ágil e mais produtiva. Dá origem a imagens, a fantasias, a devaneios torna-se um motor da ficção. Talvez pareça estranho considerar a ficção como o medo em potência. Mais difícil é, talvez, aceitar a potência do medo que ele (para o bem ou para o mal) pode ser produtivo e fértil. Que não é só algo que nos paralisa, mas que nos empurra também.
Fui um menino medroso. Até hoje, com cabelos brancos, o medo é o sentimento que mais me incomoda. No medo, algo sempre nos impulsiona e desloca. Ainda assim, aprendi não só a lidar com o empurrão que ele desencadeia; aprendi que posso tirar alguma coisa disso. Que ao contrário do que dizem as crenças "saudáveis" é talvez aí, onde tremo, que o que tenho de mais pessoal se guarda.
É assim, tomado por ideias antigas, mas insistentes (e, por isso, potentes), que leio "Medo", novela do austríaco Stefan Zweig (1881-1942), guardada em "Três novelas femininas" (Zahar, tradução de Adriana Lisboa e Raquel Abi-Sâmara). "Medo" está na abertura do livro. Trata de um tema banal: um triângulo amoroso e os temores que ele provoca. Irene, uma mulher bem casada que se aproxima dos 30 anos, tem um amante, um jovem pianista, com quem se encontra uma vez por semana. Cada vez que chega ao apartamento de Eduard, o calor da paixão a protege. Cada vez que sai, contudo, deixa-se envolver por ideias que a desmontam. É assaltada, então, por "esse outro pavor misterioso, agora misturado de forma confusa com uma torrente de culpa e uma tola loucura de que cada olhar na rua pudesse ler nela de onde estava vindo".
Toda a segurança anterior se desmancha. Todo o fogo que a acalentava e empurrava logo se desfaz em golfadas de agitação. "Lá fora, no entanto, já estava o medo, impaciente para pegá-la, freando-lhe tão impetuosamente os batimentos que ela sempre descia os poucos degraus sem ar, até sentir falhar-lhe a força que conseguira reunir nervosamente". Algo a desmonta uma mistura de pensamentos, de agouros, de sensações. Deslocada de si mesma e de seu centro, Irene passa a ler indícios em todas as coisas, a enxergar sinais por toda parte. A mente se desenrola em vestígios aflitivos.
Em uma dessas saídas secretas, uma desconhecida a aborda. Apresenta-se como a antiga amante do pianista, ironiza sua dupla posição de mulher casada e amor secreto, e passa a chantageá-la. Irene se põe a pensar, então, no que a atrai em seu jovem amor e conclui que é a melancolia. Estado de abatimento e desencanto, também a melancolia aponta para uma ruptura. Da tristeza profunda do rapaz emergem extratos de grande sensibilidade e delicadeza que Irene não consegue enxergar em outros homens. Ambos estão em falta ela com sua imagem de mulher bem posta, e ele com a figura solene do homem que sabe o que quer. Ambos se desviam dos protocolos de hábito e normalidade, e é esse afastamento que neles cava a imaginação.
A chantagista, aos poucos, multiplica e sofistica seus ataques. E quanto mais ela age quanto mais o medo se instala , mais as fantasias de Irene se tornam múltiplas e férteis. Pena que se ergam contra si mesma, que não consiga ver o quanto elas têm de criativas. O processo de sensibilização que o medo desencadeia a leva, também, a enxergar, enfim, a gentileza superficial do marido, Fritz. "Ele era sempre comedido ao falar com ela, nunca impaciente ou irritado, e seu comportamento geral era de uma gentileza serena". Irene passa a ver no amor do esposo a expressão do vazio que, em contraste com sua mente em ebulição, lhe parece agora repulsivo.
Fritz insiste que Irene deve confessar o que a atormenta. Mas, se aquele segredo dói, também rasga em sua mente um território sensível que ela ignorava. "Desde que conhecera o perigo, e com ele um sentimento verdadeiro, todas as coisas, inclusive as mais estranhas, começaram a tornar-se comuns para ela". O medo tem uma potência: ele repuxa nossas máscaras e nos joga de volta ao que somos. Ele intensifica o contato com o mundo, tornando-o, se mais perigoso, mais atraente também. Um dia, explicando por que castigara a filha que destruíra por inveja um brinquedo do irmão, o marido se justifica: "O medo é mais maligno que o castigo, seja qual for, é algo determinado, muito preferível ao terrivelmente indeterminado, esse infinito pavor da aflição". Homem austero, Fritz prefere a clareza e a certeza. Não pode entender as vantagens que a aflição e a dúvida podem gerar. Não que não doa: dói. Mas a instabilidade da aflição é preferível ao caráter duro e gélido do rigidamente determinado. Só ela pode se desdobrar em visões mais agudas, abrir a sensibilidade e nos levar a encarar a potência daquilo que é.
Para o marido, o castigo a lei bruta seria melhor que a suspeita, porque enquanto o primeiro está ligado ao claro, a segunda se liga ao obscuro. Também Irene, em seus momentos de exaustão, anseia por um mundo fixo no qual cada coisa ocupe seu devido lugar. Acontece que as coisas não estão exatamente em seu lugar as coisas são intercambiáveis. As coisas são volúveis e maleáveis e é essa inconstância que desencadeia não só o medo, mas o desfiladeiro das fantasias. A questão não é não ter fantasias, não é matar a imaginação. A questão é saber o que fazer com elas, que direção lhes dar, como ter coragem para impregnar-se de sua fértil fluidez.
A chantagista representa o infame é aquela que manipula a riqueza (um amor intenso) para transformá-la em pó. O marido... aqui não se pode revelar demais, ou a novela de Zweig desmonta. Basta dizer que existem muitas maneiras de manejar o medo para dele tirar vantagens perversas. A beleza do medo o que não diminui a dor que ele gera está em seu poder de potencializar a existência. Uma vida plácida é, em geral, uma vida anestesiada. Essa é a grande descoberta de Irene. Arrasta-a, enfim, o desejo de encher-se de dúvidas, de agitar-se, para voltar a si.
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