Ideias fixas são terríveis grilhões. Não passam de algemas invisíveis, aparentemente inofensivas, mas que podem deter e congelar uma vida. É o que experimenta o compositor Felipe Werle, protagonista de As Pequenas Mortes (Rocco), romance de Wesley Peres. O infeliz Felipe sem nenhuma prova disso tem certeza de que morrerá precocemente de câncer. Atribui sua certeza ao acidente com o Césio 137 em Goiânia, cidade em que nasceu, ocorrido no mês de setembro de 1987. O mais grave episódio de contaminação por radioatividade registrado na história brasileira.
Em 1987, Felipe Werle tinha 12 anos. Nunca mais se livrou da ideia de que está prestes a morrer. Tem sua vida arrastada por uma obsessão: a de que não lhe faltam muitos dias. Sabe que não consegue se livrar de seu grilhão, que "fez de mim um paranóico". A doença imaginária se duplicou em uma doença verdadeira. Às vezes, porém, alimenta a ilusão de que a paranoia o protege contra o câncer. Se está delirando, não está doente, consola-se. E afunda ainda mais.
Felipe não consegue separar a mente do corpo. Compara-se a Daniel Paul Schreber, o célebre paciente de Sigmund Freud, mais famoso paranoico da História. O paralelo, contudo, não o salva, nem o alivia. Como Benedito Schreber, o pai de Paul, ele acredita que os males da alma provêm de distúrbios no corpo físico, e por isso ele teria o espírito para sempre condenado. O pai de Paul Schreber acreditava numa "correção da alma" mediante a correção ortopédica do corpo. O que o levou a dedicar a vida à invenção de máquinas de reeducação corporal.
O infeliz Felipe, porém, já não sabe em que acredita, sabe apenas que sofre. O romance de Wesley Peres é o relato minucioso, precioso, paranoico de seu sofrimento. Felipe sente-se sempre obrigado a se submeter a exames médicos que investiguem seu "câncer", mas tem horror às máquinas que, para examiná-lo, invadem seu corpo. Os próprios exames, assim, se tornam parte de sua doença. A paranoia devora tudo a seu redor: nada escapa. A própria escrita de Felipe "sofre" da doença que a move. Os limites se rompem. Já não sabe, sequer, o que é sofrer, embora sofra todo o tempo.
Se a alma "é um efeito do corpo", como imagina, só resta a Felipe, o sofredor, redobrar a atenção sobre o corpo. É um compositor de sucesso, que recebe prêmios importantes mas a música é apenas um intervalo que, em vez de aliviar, sublinha e contorna sua dor. Acredita Felipe que o câncer "é o modo ortodoxo de o corpo morrer-se". Seria a morte natural todas as outras não passariam de variações, ou mascaramentos do cancro. Sua narrativa é o relato do que define como "um apocalipse pessoal". Toda morte é pessoal, toda morte é vivida na mais absoluta solidão. Escrever sobre ela é uma tentativa, de antemão fracassada, de dividir o indivisível.
Felipe frequenta um psicanalista para tratar daquelas que considera suas três doenças mais graves: o gosto pelos excessos, pela tinta negra da melancolia e pelo "pesadelo azul" de pensar obsessivamente na morte. Conta com o apoio da namorada Ana, que luta, sem sucesso, para conter seus "pensamentos cancerígenos". Felipe vê a paixão, igualmente, não como uma escolha, mas como algo de que sofre. Uma doença, portanto. O corpo físico seria, antes de tudo, "o portador da morte" e por isso ela se espalha inevitavelmente por todos os lados, inclusive pelo amor.
Para Felipe seguindo ao pé da letra o Bhagavad Gita dos hindus o corpo humano estaria marcado pela chaga de nove buracos. "A sabedoria?", ele se pergunta. E para responder cita o filósofo romeno Émile Cioran: "A sabedoria seria sofrer dignamente a humilhação que nos infligem nossos nove buracos". A forte escrita de Wesley Peres é transpassada por detalhes bruscos e mórbidos a respeito da realidade física. Sua linguagem oscila entre a elegante meditação filosófica e a descrição quase obscena da realidade física. Não é um romance fácil de ler, não só porque nos choca, mas porque deixa marcas profundas na falsa placidez de nosso espírito.
A morte é azul porque esta é a cor provocada na visão humana pela radiação. O azul perde, assim, todos os seus atributos românticos, perde a suavidade e se torna uma cor pesada e fatal. Tudo na vida de Felipe se contamina por esse azul que é dor e doença. Mesmo o amor: "Amar é dar aos outros o próprio inferno", define. Vasculhando o espírito do personagem Felipe, um minucioso Wesley Peres pratica, assim, uma espécie dolorida de "realismo interior". Como se o objeto de sua escrita fosse não apenas as vísceras do corpo, mas as vísceras da alma. Nada escapa. Certa vez, seu personagem sonha com Deus "e ele era feio e tinha olhos cifrados e que produziam cifras dentro de cifras, um ciframento infinito, até atingir um ponto maciço de ciframento que equivaleria ao terror". Um Deus que é puro terror: pode haver condenação mais definitiva?
A incansável Ana tenta arrastar Felipe de volta para o presente, livrando-o das projeções que contaminam seu futuro, mas nada consegue. "O bom mesmo é não ter esperança", ela insiste, sabendo que para o amado a esperança não passa da espera da morte. Já Felipe, se continua a escrever, não é na esperança de preencher seu vazio, mas de produzir o que chama de um "vazio mediador". Ele o define como "um vazio que frequente os vazios do leitor". Arrasta assim a nós todos, seus leitores, para o interior de sua doença. Não busca testemunhas, mas cúmplices que afundem ao seu lado.
Para Felipe, a "pequena morte" não é como a entendemos normalmente o gozo sexual, mas cada pequeno movimento silencioso que antecipa a falência de cada órgão do corpo humano. Ela transcorre em zonas inacessíveis ao pensamento e à razão. O corpo não pensa, o corpo é. Agarra-se à literatura na esperança de que ela possa penetrar essas regiões inacessíveis à mente. A literatura como uma ponte de acesso a algo de que a razão não dá conta. A literatura como cura do corpo: eis a esperança última do personagem de Wesley Peres.
Agindo assim, o próprio Wesley, o autor, faz uma aposta radical na potência da escrita. Que não passaria de um instrumento imaterial, mas eficaz, para costurar os fracassos da carne.