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Romance

As Leis da FronteiraJavier Cercas. Tradução de Josely Vianna Batista. Biblioteca Azul/Globo Livros, 432 págs., R$ 49,90.

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Contar uma vida, resumi-la, explicá-la - será isso possível? É o esforço que faz Ignácio Cañas, o protagonista de As Leis da Fronteira, livro do espanhol Javier Cercas. O romance é narrado como uma série de entrevistas, não apenas com Cañas, o principal informante. Pedaços se costuram precariamente. Vozes buscam um fio que as ligue. Tudo no esforço de dar vida a Zarco, um marginal cheio de glamour a quem Cañas conheceu, e de cuja luta insensata se aproximou, em1978, três anos apenas após a morte do general Franco.

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As aventuras de Zarco, um mito da marginalidade, se passam em Girona, na Catalunha. Ele é um "charnego", apelido dado aos emigrantes vindos do interior do território. A essa altura, Girona é uma cidade cercada por um mundo marginal. Uma fronteira imaginária separa suas duas partes. Quando conhece Zarco em um fliperama, Cañas é só um adolescente de classe média, tímido e inquieto, massacrado pela brutalidade dos companheiros de escola. Procura um esconderijo, encontra-o na figura do herói marginal - repetindo um fascínio pela margem que marcará parte importante da juventude da segunda metade do século 20.

Trinta anos depois, um escritor colhe material para um livro sobre o mito de Zarco. Cañas se torna seu principal informante. No fliperama em que ele e seu anti-herói se conheceram, a máquina de pinball preferida de Cañas era dedicada ao herói Rocky Balboa. Zarco e a garota, Tere, o expulsam do jogo. Naquele primeiro gesto brusco, contudo, surge uma aliança. Passa a frequentar o Bairro Chinês, que não era exatamente um reduto da comunidade de migrantes da China, era mais uma espécie de "boca do lixo". Ainda tenta resistir trabalhando numa mercearia, mas quando dá por si está totalmente envolvido pelo mundo sujo de Zarco.

"A história que vou lhe contar não é a do Zarco, mas a de minha relação com o Zarco", ele adverte seu entrevistador. Começa a se traçar, assim, um retrato torto do herói marginal, uma espécie de retrato lateral, marginal ele também. Javier Cercas, o escritor real, sabe que também a literatura transcorre numa oscilação entre o centro e a margem, entre a verdade oficial e as verdades submersas, e que é dessa inconstância que ela tira sua riqueza. Quanto mais paradoxal, mais inquieta uma narrativa, mais rica ela será. Cercas é mestre na arte da quebra de fronteiras e este romance é mais uma prova disso.

Conforme se aproxima de Zarco, Cañas – que em sua entrada na gangue será apelidado de Quatro Olhos – passa a sentir rancor profundo contra os pais. Renega sua classe social para viver um sonho – doloroso, mas intenso – de transfiguração. Sua admiração por Zarco é uma mistura explosiva de fascínio e dúvida. A gangue rouba carros, assalta casas vazias, pratica pequenos furtos. "Ali começou o perigo de verdade", Cañas resume. Quando participa pela primeira vez do roubo de chalé, experimenta seu batismo de fogo. Queima-se – com entusiasmo e medo, espanto e excitação – no mundo da margem. Toca o outro lado. Aquele que não é previsto pelo script de sua vida de rapaz de classe média. Entende que entrou em um caminho sem volta.

Os objetos furtados vão para receptadores. Uma rede sombria passa a envolvê-los. Não usam drogas pesadas, apenas maconha. Conservam certos limites que, no entanto, não servem para garantir coisa alguma. A seu entrevistador, 30 anos depois, Cañas nega que Zarco fosse idealizado e assegura que aceitou dar um depoimento só para destruir seu mito. Mas admite que terminou sendo o primeiro a idealizá-lo. Quanto mais confessa, quanto mais abre suas memórias, mais se afunda nas próprias palavras. Conhecida como Liang Shan Po – nome tomado de empréstimo de um seriado de tevê, uma versão oriental de Robin Hood –, a gangue de Zarco está, sim, desde o início, encoberta por lendas. Cañas se torna, ele também, mais uma lenda.

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Na versão policial, Zarco é não só um dos símbolos da delinquência juvenil, mas o "viciado oficial" da Espanha. Já Cañas seria apenas "um adolescente de classe média dando um passeio pelo lado selvagem". Com o avançar das páginas, o contraste de versões ao mesmo tempo clareia e borra o retrato de Zarco. Quanto mais a verdade se adensa, mais ela mostra, mas também mais esconde. A polícia começou a perseguir a gangue de Zarco ainda sem saber o que perseguia. A margem é fluida e obscura, nelas os personagens surgem de repente e desaparecem logo depois. Mais complexo que seu anti-herói, Cañas luta para sobreviver em uma vida dupla, entre a marginalidade e o convencional, entre o crime e a lei. Perdido, debatendo-se para cá e para lá, torna-se um personagem tão rico quanto Zarco.

A gangue é guiada pelo improviso e pelos impulsos de Zarco – e é isso que traça sua decadência. Mais tarde, Zarco se tornará um herói da mídia, assinará biografias e terá até filmes sobre sua vida. O que nele tanto fascina? Não é a certeza, mas a incerteza. Como seu anti-herói, também Cañas é um personagem de alma dividida. É esta divisão e o abismo que ela descerra que torna os dois personagens tão fascinantes. Estruturado como uma busca inconstante, e não como um romance com início, meio e fim, também o livro de Javier Cercas guarda o mesmo estilo escorregadio que marca a vida marginal. O último golpe da gangue, improvisado e patético, é um fracasso. Tudo isso, em vez de obscurecer, engrandece o mito de Zarco e dos seus.

O destino do jovem Cañas será traçado por um policial, o inspetor Cuenca, e por seu próprio pai. Um círculo se fecha – ou um futuro imprevisto se abre. O romance de Cercas trata da construção dos mitos, que podem ser feitos de materiais imprevisíveis e representar sentimentos improváveis. Em nosso mundo cada vez mais caracterizado pela turbulência e pela mistura, a margem está, a cada dia, mais quebrada, mais difusa e mais próxima. Uma pergunta parece definir nossos dias: "Onde estou?" No fundo, carregamos a margem dentro do peito como uma espécie sinistra de destino.

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