Livro

Cartas Extraordinárias

Shaun Usher (org.). Tradução de Hildegard Feist. Companhia das Letras, 368 pp., R$ 99,90.

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Escritas no calor da hora, movidas pela força dos impulsos, as cartas costumam ser espécies de relâmpagos que rápidos, mas agudos, desvelam todo um mundo que a vida social e seus protocolos se empenham em esconder. Daí a importância de um livro de aparência leve e até decorativa como Cartas Extraordinárias, reunião de cartas de personalidades como Leonardo Da Vinci, John F. Kennedy, Louis Armstrong, Albert Einstein e Fidel Castro. Em princípio, toda carta é extraordinária, já que foge do usual ou do previsto — guardando, sempre, algum desabafo ou surpresa. Detenho-me aqui nas cartas assinadas por escritores — na esperança de verificar o quanto elas revelam a respeito da arte que praticam. Nomes como Virginia Woolf, Fiódor Dostoiévski, Charles Bukowski, Rainer Maria Rilke e Walt Whitman me servem de espelho na luta para compreender uma arte que, provavelmente, escapa a toda compreensão.

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Nas cartas há, sempre, algo de secreto — ou pelo menos de impronunciável. Há um pedido — seja de ajuda, de compreensão, ou de testemunho. Há uma esperança, embora ela, na maior parte das vezes, se perca no tumulto das aflições. A carta de despedida de Virginia Woolf ao marido Leonard, escrita em março de 1941, ilustra esse "espírito desesperador" que, seja como for, mais intenso ou mais leve, costuma mover as correspondências. Pedido de ajuda — no caso de Virginia, um pedido para que o marido aceite o suicídio dela.

"Começo a ouvir vozes e não consigo me concentrar. Por isso estou fazendo o que me parece a melhor coisa", escreve ela. "Veja que nem consigo escrever direito. Não consigo ler." Para um escritor, um mundo sem palavras parece mesmo um deserto. Não perde a confiança em Leonard — e expressa isso enfaticamente —, mas entende que ela já não lhe basta. Chegou a um limite: "Se existisse alguém capaz de me salvar, seria você. (...) Não posso continuar estragando sua vida". A carta de Virginia Woolf ilustra, com muita clareza, o papel da escrita como fronteira. Não só um pedido de ajuda, mas a constatação, tantas vezes terrível, de que essa ajuda já não é possível.

Cartas servem, também, para desvelar sentimentos ambíguos e ocultos, como os da escritora Emily Di-ckinson para a amiga e cunhada Susan Gilbert, em carta de junho de 1852. Não que resolvam esses sentimentos, mas os expõem como feridas abertas. Escreve Emily, sem poupar palavras: "Meu coração só tem lugar para ti, só tu existes em meus pensamentos, e, no entanto, quando procuro te dizer alguma coisa, faltam-me palavras". Essa é uma experiência recorrente nas cartas: quanto mais se escreve, mais se esbarra na insuficiência da escrita. Mais se tem a dizer.

Muitas vezes se escreve para exibir sentimentos de indignação — como na carta que Charles Dickens escreve ao Times em novembro de 1949. Assiste a um enforcamento em praça pública. Mais que a experiência da execução, assombra-o a reação histérica da plateia, tomada por um sadismo que parece não ter fim. "Brigas, desmaios, assobios, piadas grosseiras, ruidosas demonstrações de indecente prazer", lista Dickens, sem conter o espanto. A carta lhe serve como um espaço para desa-guar sua indignação. Seu nojo e repulsa para com seus pares. "O que me move é o desejo de tirar dessa tétrica experiência algo de bom para todos." Através das palavras, sustenta um fio de sentido e de dignidade. Escreve para existir.

A afirmação da verdade — ou, pelo menos, de uma verdade pessoal — move grande parte das cartas. Assim é a carta que Ernest Hemingway escreve ao amigo F. Scott Fitzgerald em maio de 1934, fazendo uma dura avaliação do romance Suave É a Noite. "Scot, pelo amor de Deus escreva e escreva com verdade doa a quem ou a que doer mas não faça essas concessões bobas." Repreende o amigo por decorar as feridas da verdade com o recurso da invenção. "Inventar é ótimo, mas você não pode inventar nada que não aconteceria na realidade." Mais uma vez, mesmo no terreno ambíguo da ficção, a busca da verdade se impõe.

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Busca que se repete em uma das célebres cartas do poeta Rainer Maria Rilke ao jovem Franz Kappus, datada de fevereiro de 1903. Alerta Rilke, antes de tudo, que nem sempre as palavras (mesmo em uma carta sincera) dão conta do mundo. "A maioria dos acontecimentos é inexprimível e tem lugar numa esfera em que jamais entrou uma palavra." Feita a dura ressalva, Rilke sugere ao jovem que não se deixe dispersar com as solicitações do mundo exterior. Que se concentre em si — único caminho para se aproximar da verdade. "O senhor pergunta se seus versos são bons. (...) O senhor está olhando para fora, e isso é o que absolutamente não deve fazer no momento." Devolve o rapaz a si mesmo e aos próprios riscos. "Procure o motivo que o leva a escrever; descubra se está lançando raízes no mais fundo de seu coração; pergunte a si mesmo se morreria, caso não pudesse escrever." Incita-o, assim, a uma aproximação da verdade — que está nas pequenas coisas, "pois para o criador não existe pobreza nem lugar pobre e insignificante".

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