Romance
Luzes de Emergência Se Acenderão Automaticamente
Luisa Geisler. Alfaguara, 296 págs., R$ 39,90.
A presença, ou a ausência, do leitor é um dos enigmas que mais inquietam os escritores. Escrever sem saber para quem. Dirigir a palavra sem garantias a respeito de seu destino. Nada se sabe a respeito do leitor, essa sombra que habita o lado externo das ficções. Estará ele onde o escritor espera? E, se estiver mesmo lá, quem será exatamente? Essa experiência aflitiva não é vivida, apenas, pelos escritores. Ela intriga qualquer um que escreve. Será a pessoa a quem dirijo uma carta, ou um e-mail, aquela que suponho? Como minhas palavras serão recebidas? E se elas se perderem ao vento, se ficarem sem resposta?
Dessas interrogações enervantes a jovem Luisa Geisler arrancou um romance: Luzes de Emergência Se Acenderão Automaticamente (Alfaguara). Uma narrativa simples e descomplicada que, com desafetação, se aproxima de uma das mais graves perguntas da literatura. O protagonista, Ike, é um rapaz comum, que namora, frequenta a internet, dá duro na loja de conveniência de um posto de gasolina e, como qualquer garoto, toma suas cervejas para sonhar. O mais difícil: ele escreve cartas para o amigo Gabriel que, depois de um tolo acidente doméstico, entrou em coma profundo e agora agoniza em uma UTI. Dizer que são dois protagonistas singelos, quase banais, não diminui o livro de Luisa. Uma frase de Tolstoi, tirada de A Morte de Ivan Ilitch e colocada na abertura do romance, nos adverte a respeito: "A vida de Ivan Ilitch foi uma das mais simples, das mais comuns e, portanto, das mais terríveis".
"Meu velho, tu vai ler isso?", se pergunta Ike já em sua segunda carta, escrita em Canoas, periferia de Porto Alegre, onde vive com a família. Ike tem o sonho de abandonar sua vida medíocre e mudar de cidade, na esperança de que, enfim, grandes acontecimentos o agitem. Também sua namorada, Malu, só suporta a rotina graças à ajuda de ansiolíticos. A vida do rapaz não tem atrativos: "Eu nunca tenho folgas. Pelo menos eu ganho por periculosidade, o perigo de se trabalhar num ambiente que um bêbado pode entrar e vomitar tudo". A insignificância não exclui o risco, ao contrário, o exacerba. É a respeito dessa existência sem emoções que ele escreve. Cartas que Ike nem sabe se o amigo Gabriel, um dia, chegará a ler.
"O Steve Jobs morreu uns tempos atrás", ele relata, em luta para reunir informações que a passagem do tempo não lance na irrelevância. "Morrer é um troço engraçado. (...) Agora, eu penso em ti morrendo. E não sei se é triste". A previsibilidade da rotina humana rouba energia das grandes experiências. Ike vive em um mundo que se desvitaliza e se esfarela. Sempre que entra na UTI para visitar Gabriel, esbarra com pessoas sonolentas e imóveis, deitadas ao lado de cadeiras vazias. "Uma mulher falava pra si mesma, olhando pro próprio soro". A imagem, terrível, evoca o destino do escritor, imobilizado diante do papel e entregue às próprias ruminações.
Já não fala mais com o amigo agonizante, limita seu contato às cartas, que, imagina, não o aborrecem. Um dia, passado o pesadelo ele pensa , Gabriel enfim as lerá e dará grandes gargalhadas. Em uma delas, rememora o acidente que calou o amigo. O rapaz se balançava em uma rede quando o pino de sustentação arrebentou e o jogou longe. Ainda ficou por um breve tempo acordado, rindo de si mesmo, mas logo depois perdeu a consciência. Agora é esse fantasma, um boneco de vento, através de quem as palavras passam. Mas será, de fato, para Gabriel que Ike escreve? Ou será para si mesmo?
O posto de gasolina o entedia não porque seja inóspito, ou bizarro, mas "pela normalidade". É a vida normal mera cópia de uma cópia, em uma série interminável que o angustia. É dela que foge com sua escrita. Só as cartas, lidas ou não, diminuem o tédio. "Espero que tu nunca precise conhecer esse lugar", admite. Durante uma visita à UTI, enquanto a enfermeira faz a troca de cobertores, ele constata que o amigo agora usa fraldas geriátricas. A enfermeira tenta consolá-lo. "Ela disse que tu não vai lembrar, nem das fraldas, nem do hospital, nem do que digo". Ike reflete, assim, sobre as vantagens do esquecimento, muitas vezes preferível a uma memória que só fere e abate. Mesmo assim, ainda busca informações objetivas conversando com o neurologista do hospital. As explicações do médico, porém, só o fazem entender uma coisa: que, para Gabriel, nada tem acontecido. O amigo entrou em uma espécie de lacuna existencial, inacessível até para os especialistas.
A partir dessa constatação, Ike passa a narrar em suas cartas sem culpas, ou vergonha toda a série de acontecimentos previsíveis, e sem grandes atrativos, que desenham sua rotina. O médico o desilude: "Mesmo inconsciente, uma pessoa pode ter reflexos, abrir o olho. Mas a pessoa não consegue manter contato com o mundo exterior". Continua a escrever as cartas, portanto, não na esperança de estabelecer contato, mas como o diário de uma ausência. Os assuntos são o que menos importa: fala do vazio de seu dia a dia, de seus sonhos medíocres, de suas pequenas lutas de rapaz. E se consola com a própria imaginação: "Eu te imagino lendo essas cartas e achando tudo engraçado". Essa é a única resposta que consegue obter: a que vem da fantasia. Nessa hora, Ike constata que só conta com ele mesmo. Também os escritores imitando o destino do protagonista só podem contar consigo mesmos. E com as próprias palavras.
Ike, às vezes, se critica: "tu não precisa de uma lista de tudo o que eu pensei enquanto tu tava fora". Mas é exatamente o que faz: um resumo de sua maçante viagem em torno de si mesmo. Relembra um poema que escreveu na adolescência, em que o amigo cita Drummond, dizendo que "perdeu o bonde e a esperança". Avança em suas cartas desesperançadas que, ainda assim, ele precisa escrever. Em outra delas, recorda-se de uma canção da banda Charlie Brown Jr., em que surge o lamento: "Meu, tu não sabe o que que aconteceu". Admite: "Eu me sinto meio assim agora". A consciência da ignorância, porém, não o ajuda em nada. Um vento morno o arrasta, igualando-o ao amigo agonizante. Já não importa para quem escreve, se para Gabriel, ou para si mesmo. As palavras lhe bastam.
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