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Poesia: A Arte de Andar por Aí sem Portar um Celular- José Godoy. 7Letras, 78 págs., R$ 29 |
Poesia: A Arte de Andar por Aí sem Portar um Celular- José Godoy. 7Letras, 78 págs., R$ 29| Foto:

Ler um poeta: ler José Godoy e seu A Arte de Andar por Aí sem Portar um Celular (7Letras). Escolher uma chave, procurar, procurar, e chegar, enfim, aos "Três poemas sobre o abismo". Chegar a um mundo cru, um mundo inicial — terra que se limita a respirar e a ser. Território íntimo, no qual o ser sobrevive. Nosso mundo — ali onde a poesia deita suas fundações.

O poeta se apresenta, "em vão", ao abismo. É um mundo sem estampas e sem firmamentos. É, talvez, uma "metáfora do mal". Pensem em nosso mundo contemporâneo, cheio de artefatos e de acontecimentos. Nosso mundo acelerado, no qual o tempo parece insuficiente — para quê? Nesse mundo super povoado, o vazio não tem um lugar. Estamos todos conectados — em celulares, em tablets, em ebooks, em laptops, em satélites. A grande rede nos agasalha. Mas é preciso não esquecer: por mais vasta que seja a rede, ela é sempre feita de furos.

Nos furos, o vazio. Nos furos, o lugar em que o poeta se posta e se apresenta. O poeta estreante José Godoy se apresenta, diz ao que veio ou, pelo menos, ao que não veio. "O abismo/ não é lugar/ é instância imaterial", escreve o poeta. A rigor, não existe — é só um nome que imaginamos para um lugar em que nada mais houvesse. Ele "existe na linguagem/ não ocupa/ o espaço referencial". Pensem nas cidades tomadas pelos carros. Pensem nas agendas, das quais compromissos inviáveis transbordam. Pensem nas planilhas que, por mais detalhadas, nunca esgotam o destino do ser. Está tudo cheio. O vazio, o poeta nos diz, é só uma construção a que nos agarramos. É só uma hipótese, e dela sobrevivemos.

"Metáfora inventada,/ no homem inscrita,/ recuso pensá-lo/ como imagem/ finita". O abismo não tem margens, não tem bordas. Não aceita o calor da figuração. Não se pode pintar um abismo, já que ele é justamente aquele lugar ao qual a pintura (o olhar) não tem acesso. Ainda assim, "é comum nomeá-lo". Bem que tentamos. Fazemos imensos esforços para dar uma borda a esse buraco que não está em lugar algum — porque está, talvez, dentro de nós mesmos. Lutamos para conter e segurar aquilo que sempre nos escapa. Abismo: lugar (não-lugar) da inexistência. Zero absoluto.

Voltemos a nosso mundo hiperconectado, hiperacelerado, hiperprogramado. Mundo hiper — do excesso. Mesmo nas paisagens desérticas não parece haver lugar para o vazio. Sempre pode surgir uma caravana, ou uma antena. No ar, um jato pode riscar seu caminho. Há sempre algum movimento e, portanto, não é abismo, lugar do absoluto vazio. O abismo apavora. O poeta (como todos nós) luta para dele fugir: "Hoje prendo meus pés/ a botas de ferro,/ couraças de magma/ e à fúria de Aquiles". Prende-se por não suportar. O abismo (o vazio) é o insuportável.

Uma amiga me faz recordar a antiga lenda zen. O discípulo pede que o mestre lhe sirva uma xícara de chá. Tranquilo, o mestre o defronta com o horror do excesso (e não do vazio). Traz um bule cheio de chá, mas, na outra mão, uma xícara cheia também — de água. "Como poderei enchê-la?", o discípulo, perplexo, lhe pergunta. Terá primeiro que esvaziá-la da água desprezível. Terá primeiro que enfrentar o vazio. Terá primeiro que atravessar o abismo.

Só assim, poderá tomar posse de algo que, a rigor, não é seu, mas lhe é dado. "Sou como/ nunca poderei ser/ dono de um destino/ que não me pertence", o poeta escreve. Tomar posse do que não é seu é o mesmo que apossar-se do vazio. "Homem de ferro/ a construir/ o próprio abismo". Ainda assim, eis tudo o que temos: a invenção. É claro: vivemos em um mundo "que nenhuma/ obstinação explica". Tomar posse de si (prender-se a si) é construir o próprio abismo. No entanto, eis a única maneira de possuir alguma coisa. Eis onde surgem as migalhas da invenção.

Ao tomar posse do que não é seu (ao inventar-se), encontramos, enfim, um sentido. Encontramos, ou inventamos? Dá no mesmo. "É tempo de matar fantasmas a pauladas./ Criar fábulas onde sol/ se ausente". Ter a coragem de trabalhar no escuro. De partir do nada: do abismo. Só assim conseguimos "ver a terra/ arrebentar-se/ em erosões". Só assim veremos o "magma/ que jorra incandescente/ no terceiro dia". É do abismo (do vazio, como o discípulo com sua xícara vazia) que partimos para construir um sentido. Ergue-se sobre nada. Não tem fundamentos. Um vento pode derrubá-lo a qualquer momento. No entanto, é seu.

O extraordinário poema de José Godoy nos coloca frente a frente, assim, com o nó do contemporâneo. Em um mundo no qual todos os lugares parecem estar tomados — como quando chegamos atrasados a um espetáculo —, se queremos dar mesmo um pequeno passo, um passo que seja, devemos defrontar o abismo. É do abismo que o poeta retira sua potência. É do vazio — só depois de atravessar um deserto imenso — que ele, enfim, consegue "andar por aí sem portar um celular". Consegue tornar-se dono de si, mesmo sabendo que este "si", na verdade, não lhe pertence. Ele é só uma pequena rolha com a qual ele veda o horror da inexistência.

Ajuda-me José Godoy, assim, a pensar a particularidade da poesia, que está, quase sempre, onde não julgamos encontrá-la. Também a poesia existe só na linguagem, sem ocupar o espaço referencial. Criação pura, ela se impõe em um lugar que, a rigor, não é seu. E que, provavelmente, nunca será seu. Ali, contudo, tece seu lento fio. Ali, com as palavras, ela encobre o mundo duro e inclemente que nos cabe habitar. A poesia parece mesmo absurda no mundo contemporâneo. É absurda.

No entanto, José Godoy não está sozinho. Pensem em Paulo Henriques Brito, em Antonio Cicero, em Alberto Martins, em Eucanaã Ferraz, em Ana Maria Marques, em Lucinda Persona, em Nuno Ramos. Quantos grandes poetas vivem, hoje, bem a nosso lado! Voltem ao século passado: Bandeira, Cabral, Vinicius, Drummond, Cecília, Schmidt, Jorge de Lima, Murilo Mendes, Mário de Andrade. Quanta grandeza, colocada a serviço da resistência. Contra o futuro? De modo algum, até porque, se há um caminho para o futuro, é a poesia quem o desenha. Resistência do humano, em um mundo no qual tudo contra ele conspira. Resistência do abismo, que nós, humanos, carregamos no peito. E que, enfim, é a marca — é o galardão — de nosso ser.

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