Romance
Federico em Sua Sacada
Carlos Fuentes. Tradução de Carlos Nougué. Rocco, 320 págs., R$ 39,50.
Durante uma viagem ao Recife, leio Federico em Sua Sacada, o romance de despedida do mexicano Carlos Fuentes, que ele terminou de escrever 15 dias antes de sua morte, em maio de 2012. Chego a Pernambuco para falar sobre João Cabral mas leio o romance de Fuentes. Levo comigo, ainda, a Poesia Completa de Cabral. Imitando o livro de Fuentes, inquieto, salto de um livro ao outro. Federico em Sua Sacada é um romance cíclico, que segue a lei do "eterno retorno", formulada por Nietzsche. Também eu retorno, sempre, a meus poetas preferidos. A beleza aprisiona.
O Federico do título é Nietzsche, que volta ao mundo dos vivos para dialogar com Fuentes. Também eu me submeto a um roteiro de trabalho que retorna sempre ao mesmo ponto. Em uma entrevista sobre biografias ao jornal Estado de Pernambuco, na noite anterior à viagem, assoberbado, cheguei a confundir o tema da palestra, e só respondi às perguntas sobre Cabral pensando em Vinicius de Moraes que tem seu centenário de nascimento comemorado este ano. As perguntas, que me foram enviadas por e-mail, se referiam ao tema geral da biografia, sem citar nomes. Mas é claro: o repórter pensava em Cabral e em minha palestra sobre o poeta agendada para dois dias depois.
Contudo, hipnotizado pelo centenário do poeta da paixão, respondi às perguntas só pensando em Vinicius. Um poeta se superpõe a outro, eles se misturam, retornando sempre ao mesmo lugar: o assombro da poesia e a impossibilidade de escrever uma biografia que esgote a vida do biografado. O repórter pernambucano não usou, em nenhum momento, o nome de João Cabral e, em minha correria, deixei-me tragar pelas imagens superpostas. Isso porque, como mostra Carlos Fuentes em seu romance, vivemos em um mundo que, imitando os ciclones, gira alucinadamente. Um mundo no qual, se não tomarmos muito cuidado (e a verdade é que, por cansaço, não tomei) tudo e todos se comprimem em um lugar só. Em um nome só. Um universo de seres inseparáveis.
No livro de Carlos Fuentes, o narrador (o próprio Fuentes) esbarra com Friedrich Nietzsche na sacada distante de sua janela. O filósofo o engole e lhe serve de espelho: conversando com Nietzsche, o escritor passa a conversar consigo mesmo. Os dois contam histórias um para o outro, e entre eles, naquele estreito espaço de meio metro, muitos personagens tomam corpo. Nunca temos muita certeza a respeito de quem fala, ou para quem fala; como numa sinfonia, as várias vozes se mesclam e se exigem. Eis nosso mundo, no qual todas as diferenças (todos os avanços) retornam sempre ao mesmo lugar. O lugar da beleza (sinfonia)? O lugar, talvez, da indiferença.
Federico ressuscitou em pleno século 21 para testar a potência de suas ideias. Os personagens que despontam entre ele e Fuentes surgem ali para encená-las. O sóbrio Aarón Azar, um advogado que, enquanto tricota para combater o estresse, medita sobre seu tema predileto: o castigo. Seu cliente, Rayón Merci, é acusado de pedofilia e assassinato. Ele só sabe repetir uma frase trágica: "Eu não queria". Até que ponto um crime é uma decisão? Até que ponto é, ao contrário, uma punição (castigo) que o destino impõe ao criminoso? Conversam, ainda, sobre Dorian, uma moça cuja beleza manifesta um mistério. "Todos trazemos ao mundo um mistério", Federico argumenta, defendendo o inexplicável e opondo-se àqueles para quem o autor é dono de sua palavra.
A beleza de Dorian se sobrepõe à pergunta colocada no centro da cena: "Qual é o limite moral de um crime?" De fato, existem coisas que não podemos evitar. Por exemplo: errar, como eu mesmo fiz num momento de cansaço. Minha troca de poetas deve ter algum motivo secreto: eis o mistério de que Federico nos fala. Segredo cujo melhor metáfora talvez seja a música, o filósofo nos lembra, que é o lugar do inexplicável. Somos sempre guiados por alguma obsessão, ainda que na maior parte dos casos (felizmente) ela não nos leve a cometer crimes. Somos empurrados pelo passado. Loucura, medita Federico, será talvez excluir o passado e desprezar o presente meter-se no instante eterno. Mas não é nele que estamos? Não é por isso que tudo sempre volta?
Em um asilo psiquiátrico, Ludens, o médico, depois de dividir os doentes entre os "tranquilos" e os "intranquilos", afirma que ambos sofrem de "feridas invisíveis". Tanto os tranquilos como os intranquilos somos vítimas de uma guerra interminável com a realidade. Como carregamos feridas também em nossos rostos, usamos máscaras para cicatrizá-las. Nosso rosto se torna, então, uma superposição de emplastros, nos mostra a desconfiada Gala outra personagem, uma mulher discreta e infeliz. As histórias narradas por Fuentes se enroscam como o tricô praticado por Rayón Mercy. E, ao se conectarem, formam uma rede de resistência sobre a qual os personagens apoiam suas vidas. Precisamos inventar nossas próprias redes, ou não resistiremos. Não as redes da tecnologia, as redes sociais, as redes impessoais; mas redes pessoais, que nos permitam ser.
O tema de Federico em Sua Sacada é, talvez, a impossibilidade de sustentar um nome. Temos um nome (somos alguém), mas logo somos outros (temos outros nomes) e mais outros (outros nomes ainda). Resta em nosso corpo, por fim, uma grossa camada de etiquetas. É muito difícil ser uma pessoa e não muitas e este fato expõe, de forma aterrorizante, a fragilidade do humano. Quem sou? Quantas respostas eu posso dar a esta pergunta? Carlos Fuentes desdobra seu romance em uma série interminável de personagens, que se aproximam, se entrelaçam, se repelem que lutam para ser. De novo, o ciclone talvez o melhor (ainda que incômodo) nome para nossa alma.
Diz Federico: "É impossível sair de seu próprio inferno". Somos egoístas, não temos o hábito de considerar os outros, mas apenas o que levamos conosco. Nossas obsessões nos dispersam: são como botes salva-vidas que, em pleno naufrágio, nos escapam. Contudo, Federico nos mostra, o mal existe porque se tudo fosse bom não haveria sentido algum em viver. O sentido é a direção que damos a nossa luta contra o mal. Ainda que essa seja uma luta que, no fim, sempre nos vence.
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