De origem árabe, a palavra "amálgama" se refere não só à liga de mercúrio com outro metal, mas tem também o significado mais amplo de ajuntamento, combinação, fusão, e ainda o de confusão. Essa mistura esse amálgama de significados me ajuda a ler Amálgama (Nova Fronteira), o novo livro de contos de José Rubem Fonseca. Fala não só na mistura, em um mesmo livro, de 34 textos curtos e bastante heterogêneos, mas também de uma estética que leva cada um desses escritos a vacilar entre vários gêneros e a experimentar novos caminhos.
Nas narrativas de Fonseca, os acontecimentos parecem ficar sempre pelo meio, quebrados, adulterados. Descobrimos a verdade só para esquecê-la, já que a verdade toda é sempre insuportável como lemos em "Segredos e Mentiras", o texto que abre o livro. As palavras, em vez de ajudar, muitas vezes afogam quem as diz. Admite, de saída, o narrador: "Tenho uma tendência à prolixidade, uso mais palavras e frases do que o necessário e acabo me tornando enfadonho". Os contos de Fonseca não são enfadonhos, ao contrário mas, apesar dos textos brevíssimos, seus narradores parecem sofrer, quase sempre, de alguma dificuldade para expressar.
Voltando à ideia do amálgama, é bom lembrar que, na química, o mercúrio é um elemento metálico pesado e venenoso. Trata-se do único metal que mantém a forma líquida à temperatura padrão o que acentua seu caráter de disfarce e de segredo. Na mitologia, Mercúrio é o deus da eloquência e ocupa um lugar "entre" é um mensageiro que circula de um lado para outro traçando correspondências e transmitindo informações. Todos esses significados acentuam o caráter complexo do amálgama e se refletem nos relatos de Rubem Fonseca.
São histórias simples mas que, muitas vezes, se situam para além de qualquer entendimento, o que se evidencia no brevíssimo relato de seis linhas (poema?) chamado "Sentir e Entender". Afirma Fonseca, sem qualquer medo do lugar comum: "A poesia não é para ser entendida é para ser sentida". Aponta, assim, para um velado, mas forte, caráter poético não só deste, mas dos escritos que ocupam o livro. A tese se desenvolve em um conto como "O Espreitador", a história de um homem que persegue mulheres nas ruas acreditando na origem benigna de sua fixação. Um dia, um psiquiatra lhe sugere, ao contrário, uma origem trágica para seu vício que ele, enfim, não através do pensamento, mas dos sentimentos, entende ser a verdadeira. A verdade se camufla. A lógica da verdade pode ser um exercício de mentira. A verdade pode estar nas brechas.
Não são temas fáceis de enfrentar e, por isso, Fonseca define o escritor como um sofredor. É o que sofre de ideias que não sabe que tem, de sentidos que lhe escapam, de motivos que ignora. Está dito em "Escrever", pequeno relato em que o autor se detém para pensar no que faz: "A ficção consome corpo e alma. Os poetas também poderiam ser incluídos aqui, se eles não tivessem pacto com o diabo". No caso dos poetas, o suposto pacto os salva. Já os ficcionistas ficam absolutamente sozinhos com seu destino. "O ficcionista quanto melhor pior, sofre mais, depois de algum tempo não aguenta o sufoco". Os mais sensatos, ele prossegue, desistem. Para Fonseca, desistir pode ser a maior sabedoria de um escritor.
O escritor deve lidar com imenso cuidado com o real. Está em "Sonhos": enquanto conserva como um segredo suas fantasias sexuais com a psicanalista, um analisando consegue se conservar inteiro. Mas quando, incentivado pela ideia de "dizer toda a verdade", ele as revela, o real se impõe de modo avassalador a analista, para sua surpresa, cede e os sonhos se desmancham. Por isso, como está no relato seguinte, "Fábula", só devemos nos referir à realidade se a deformamos. O que são as fábulas? São relatos que aproveitam uma ficção alegórica para sugerir a verdade. A ficção não diz a verdade, ela apenas a sugere. Só deformando a realidade, torcendo-a um pouco, conseguimos aceitá-la. Só a alusão - e nunca o olhar direto nos olhos do real salva um escritor.
Mas Rubem Fonseca também não confia inteiramente nas fábulas. Pensando na célebre fábula de Esopo, e ao contrário de seu autor, defende a preguiça da cigarra contra o empenho da formiga. "Qual é a lição, o preceito moral desta fábula? Que cantar é um crime que merece ser punido? Que a alegria é um mal a ser combatido? Que o desejo e o amor devem ser execrados?" ele se pergunta. "Entre a formiga e a cigarra, quem é pior?" O narrador termina seu relato negando que as fábulas de Esopo sejam uma lição de moral e de astúcia, e sugerindo que o leitor as jogue no lixo. Defronta-se, assim, com os perigos inerentes à alusão, que, ao remeter para vários lados simultâneos, em vez de clarear pode cegar. Risco, mas também grandeza da ficção.
São difíceis as relações de um ficcionista com a verdade. Em "Best-seller", depois de escrever um grande fracasso um livro que não vende nada , um escritor ouve de seu editor o conselho: "Ninguém quer mais ler ficção, a ficção acabou". Ele lhe pede que, em vez de escrever fantasias, passe a escrever histórias reais, já que os leitores de hoje só se interessam pelo real. Decidido a seguir o conselho de seu editor, o autor passa a experimentar situações de risco pessoal, pensando em depois relatá-las em seu livro "verdadeiro", para assim chegar ao leitor que tanto procura. Numa de suas experiências com o real, ele quase morre e é o relato dessa pequena tragédia que toma as manchetes dos jornais. Em consequência, seu livro anterior, o fracassado (e ficcional) "Rua do Pecado", passa a vender muito. É o seu fracasso diante do real, desmentindo a tese do editor, que empurra o sucesso de sua ficção. Os leitores querem ler ficções mesmo, podemos concluir, mas esperam que elas estejam manchadas pelo assombro do real.
Amálgama, o novo livro de José Rubem Fonseca, tem, assim, um forte caráter experimental. Cada relato é uma experiência diferente em busca de uma nova posição diante da escrita. Todos parecem amputados mas a verdade se diz sempre pelo meio. É ali onde o ficcionista fracassa que pode se abrir, sem que ele saiba disso, seu verdadeiro caminho.
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