De quantas máscaras necessitamos para suportar a brutalidade do real? Mesmo nas horas mais sinceras, quantos papéis somos obrigados a desempenhar como se subíssemos em um palco simplesmente para sobreviver? Um homem não é só o que ele é, mas é também as máscaras que escolhe vestir. Sob elas, a vida se agita, nossos ossos tremem e o real pássaro aprisionado se debate. Daí que a vida é, antes de tudo, tensão. Trata desse tremor essencial Nossos Ossos, o primeiro romance do pernambucano Marcelino Freire, narrativa curta que ele, sempre na contramão, prefere chamar de "prosa longa".
São 128 páginas elétricas que, de fato, se desdobram e se alongam sob o peso imenso das palavras. A história é simples e traz ecos muito incertos da Grécia Antiga. O protagonista, Heleno, um dramaturgo nordestino perdido nas noites de São Paulo, toma para si uma missão: devolver o cadáver de um michê a sua família. Missão impossível, pois "não sei quem são e nem onde estão". Resgatou o corpo em um necrotério da cidade. Com a ajuda da polícia, descobriu que a família do morto vive em Poço do Boi, no interior de Pernambuco. Para sustentar o papel que escolheu, precisa trocar a posição de dramaturgo pela de ator. Atormentado ator da vida real, às voltas com a fragilidade de sua máscara, da qual frágeis laços se desgrudam.
Toda a realidade se levanta contra esta luta. Sua própria sobrevivência, em meio à imensa São Paulo, dele exige uma espécie aplicada de teatro. Pernambucano também, Heleno chegou à cidade em busca de Carlos, seu namorado, que a ele se antecipou na aventura pelo sul do país. Diante do policial que escolta o cadáver do michê assassinado, ele admite: "Se houve um crime que cometi, delegado, foi acreditar no amor". Se há uma coisa que a cidade lhe ensinou, foi esta: só vivemos por engano. A vida não passa de um punhado de destroços daquilo que apenas imaginamos ser.
Diante do delegado, Heleno precisa, contudo, sustentar o papel de salvador que o destino lhe impôs, sem que nem ele mesmo saiba o motivo. Não é fácil manter-se firme, não é fácil existir. "Segurei a emoção, o teatro me deu consciência e superação, o disfarce ideal, isso, por exemplo, que está acontecendo comigo não é comigo que está acontecendo". Único caminho para sobreviver: escapar de si, "fantasiar-se", transformar-se em Outro. Em vez de uma vida, um papel. A ficção, assim, se infiltra na realidade e a comanda. Mais que isso: a ficção se torna a única via de acesso possível à existência.
Frente ao destino adverso, Heleno ainda insiste em ser um homem bom. Sua história é narrada por Marcelino como uma coleção de contos enfeixados, que dão saltos no tempo e no espaço, em sintonia com a absoluta falta de coerência da realidade. A tragédia em São Paulo se mistura, vez por outra, com delicadas lembranças da juventude. Passado e presente se enroscam numa mesma pulsação nervosa, o que talvez indique que a vida não tem mesmo coerência. Nesse cenário, não nos deve surpreender a importância da dor, que comprova Heleno é o verdadeiro combustível do existir. Diante de nossas precárias escolhas, resta o ranger aflito de destroços que jamais se encaixam.
Na infância de Heleno, a fantasia a máscara já dava as cartas. Os nove irmãos passavam horas entregues à brincadeira de juntar os ossos que encontravam na terra árida. Não era raro deparar com um crânio humano, ainda com os caninos intactos. Daquelas sobras, as crianças construíam seus sonhos. Os ossos também não se encaixavam, mas isso era o que menos importava. A imaginação prevalecia. Também na vida adulta, a coerência é só um sonho inatingível.
Quando Carlos, o ex-namorado, descobre que Heleno está em São Paulo, passa a segui-lo. Atrapalhado, Heleno luta para esconder a presença de Cícero, o "boy" musculoso que veda sua solidão, o que, por fim, desiste de evitar. A essa altura, já é um dramaturgo consagrado, com a agenda cheia de entrevistas e de viagens. A vida se desloca com velocidade e incoerência. Nela avançamos aos trancos, aos tropeções, tanto que Heleno tem a alma rasgada em feridas.
Agora, em um rabecão, ele retorna a Pernambuco escoltando o cadáver do michê assassinado. Vez por outra, "principalmente à noite, o corpo do boy soltava uns roncos". Diante dos segredos do real, Heleno agarra-se à máscara. "O teatro me ajuda a imaginar uma expressão qualquer, enquanto o pensamento foge para pensar". A máscara como escudo, enquanto o pensamento, selvagem, insiste em não se submeter. O falso Eu como um muro de contenção. Nos momentos de maior desespero, Heleno pensa em se matar. Sonha, então, com seu enterro no terreno da família, em Sertânia a mesma cidade em que o autor Marcelino Freire nasceu.
"Autoficção"? Assim como Heleno, provavelmente Marcelino Freire também sabe que deixará sua história escrita não em um romance, ou em uma peça de teatro, mas nos próprios ossos. Nossos ossos, aqueles que restarão na sepultura como último vestígio do sonho, compondo a escritura final. Neles, sim, a existência encontra uma síntese, ainda que dolorosa e inútil.
Uma frase antiga do açoriano Antero de Quental me ajuda a pensar. "Lembremo-nos que a literatura, porque se dirige ao coração, à inteligência, à imaginação e até aos sentidos, toma o homem por todos os lados". Eis a estética de Marcelino Freire: a mastigação dos homens (mastigação de si mesmo) com as palavras. "Nada escapa ao teatro", Heleno pensa, e seria possível dizer de outra maneira: "Nada escapa à literatura". Mais ainda: "Nada escapa à ficção". Estamos todos presos em sonhos incoerentes, dos quais os ossos não passam de detritos.
Em seu romance, Marcelino nos apresenta, enfim, um retrato do homem enquanto enigma. Por que fazemos o que fazemos? Por que desejamos o que desejamos? Por que somos assim? Ocorre-me, como possível resposta, uma frase do filósofo catalão Rafael Argullol: "Porque o enigma de Deus somos nós, os homens". A literatura não tenta solucioná-lo até porque enigmas não têm solução. Tudo o que um escritor faz, tudo o que Marcelino Freire faz, é render-se à turbulência (tragédia e riqueza) do real. E isso já é muito.
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