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Poesia Motivo

Luciano Trigo. 7Letras, 90 págs., R$ 27.

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Meu tio Luís Guimarães se movia com extrema lentidão. Uma paralisia infantil lhe grudava os pés ao chão. Às vezes, do quarto de minha avó, eu o via estacionado (encalhado, barco gorducho) em algum ponto do corredor. Saía de seu quarto cinco minutos antes do almoço para que não o esperassem à mesa. Confiava que sua paralisia, ainda assim, era capaz de movê-lo. Tirava movimento da contemplação. Foi um homem meditativo, que conversava com os gatos, lia os jornais com um fervor quase religioso e nos envolvia, a mim e meus irmãos, com suas improváveis, mas rebuscadas histórias.

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A leitura é um veículo traiçoeiro. Parece mover-nos para um lado, quando nos move para o outro. Chave imprudente, cheia de motivos secretos e de intenções indecifráveis, ainda assim nos prende. Lembrei-me de meu tio Luís enquanto lia Motivo, primeiro livro de poemas de Luciano Trigo (7Letras). A imagem de meu tio me surgiu já na leitura da orelha que, imitando os verbetes dos dicionários, oferece acepções variadas para a palavra que Luciano escolheu como título. Dentre elas, a que mais me interessa se refere ao adjetivo. Diz: "Que move, ou pode fazer mover; motor. Movente".

O que movia meu tio, um homem que, contra todas as probabilidades, conservou, até sua morte, relativa autonomia? A pergunta, estranhamente, é muito parecida com outra, igualmente sem resposta: o que move um poeta (Luciano Trigo), o que o leva a, contrapondo-se à dureza do mundo, insistir em escrever versos? Na lista dos adjetivos masculinos, surge na orelha de Motivo uma acepção, tomada de empréstimo da música, que me chama a atenção: "Pequena frase musical que se reproduz com variações e constitui o tema de uma composição, conferindo-lhe unidade". Eu me arriscaria a acrescentar: conferindo-lhe força, isto é, movimento.

Examino os poemas de Luciano. Logo no início, encontro um, belo, que fala da presença da felicidade no real, e não no irreal, ou no ideal. "A minha felicidade não é o que quero,/ nem o que espero,/ mas o que vejo, o que pego". A felicidade não está na esperança (de andar), no sonho não realizado (de andar), no projeto utópico (de andar como qualquer outro). Meu tio sabia disso. Não que arrastar-se não lhe fosse penoso. Mas ainda assim esse longo rastejar era "o que vejo, o que pego" – e era dali que ele devia tirar – e sempre soube tirar – alguma felicidade. A felicidade não existe: toda felicidade é sempre alguma. Parcial, capenga, rastejante, muitas vezes ela parece irreal e, no entanto, se soubermos olhar com coragem, veremos que a realidade só resiste nela.

"A minha felicidade é concreta/ A minha felicidade é em linha reta", prossegue Luciano, sustentando com firmeza sua opção pelo real e seu desprezo pelos inúteis ideais. Pelo real, com suas turbulências e desequilíbrios, vivemos momentos de paixão, e só ele – com seus atritos e sustos – nos tira da indiferença. "A razão, matemática,/ examina a paixão,/ que não tem teorema/ nem raiz quadrada". Em definitivo, Luciano é um poeta que toma o partido da paixão. Com seus desacertos, descompassos, desenganos. Com seus desgostos que, por contraste, lhe acentuam o gosto.

Daí seu desprezo pela tela do computador – na qual eu mesmo agora escrevo. É irônico: "A tela do computador/ é melhor que a folha de papel./ (...)/ No computador o poema não tem risco,/ É como se nada tivesse acontecido". Será possível, contudo, excluir o risco da poesia? Sempre que navegava pelo corredor do apartamento, meu tio Luís enfrentava graves ameaças. Tropeçava numa ponta de tapete. Batia com cabeça na quina de uma porta. Era obrigado a ouvir as reclamações dos apressados. Mas aquele corredor – seu pequeno quarto em uma ponta, a sala solene na outra – era seu oceano. Sua aventura, atravessá-lo. Só porque ela inclui o risco, a travessia o interessava. Desafiava. Alguém ou algo que nos desafia é sempre alguém ou algo que nos interessa.

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Escreve Luciano, mais à frente: "Digitar não é escrever:/ não envolve a mão inteira,/ nem o corpo, nem a matéria mítica/ do papel e da caneta/ nem a sujeira,/ nem a caligrafia ruim". Minhas tias reclamavam que, em seu rastejar, meu tio cobria a passadeira com as marcas das solas de seus mocassins. O tapete murchava, mas meu tio se engrandecia. A sujeira não se limita a sujar: ela assina. Enquanto isso, recorda Luciano, no computador "não há rasura/ o poema já sai no formato". Se havia algo que não combinava com a imagem de meu tio era a ideia do mecânico. Seus tombos eram teatrais. Mas suas reações sempre discretas. Incluía o tombo em seu rastejar. Incluía a queda em sua vida.

Decepcionava-se – mas a decepção não o assustava. Luciano (como um médium) escreve mais uma vez por ele: "então a vida é isso?/ esse gosto ruim na boca,/ esse aperto no peito,/ esse cansaço,/ essa anedota?" Meu tio gostava de anedotas. Piadas ingênuas, que valiam menos pela surpresa, e mais pelo poder de nos conservar unidos (imóveis) em torno de sua cama. Meu tio nunca soube dizer onde aprendera aquelas histórias, e nem explicar sua origem, ou sentido. Ficava com a força material dos relatos, que nos envolviam como mantas – e nos retinham em torno dele, diminuindo um pouco sua solidão.

Escreve o poeta – mais uma vez sem saber disso – em nome de meu tio Luís: "O historiador sabe das coisas/ que nem a História sabia./ Ele interpreta os fatos/ na posse de dados estranhos/ aos seus personagens". Ao contrário do senhor historiador, o homem comum (meu tio) "vive imerso num rebanho,/ numa realidade confusa/ feita de necessidade urgentes/ e sem consequências claras". Meu tio (poeta?) sustentava a incoerência do mundo. Não sabia, porém, expressá-la, apenas a vivia. Morreu em 1977, de uma unha encravada, que lhe arrancou uma perna. Quase 40 anos depois, sem jamais ter ouvido falar dele, Luciano escreve em seu nome. Certo: esta é só a maneira que hoje leio os poemas de Luciano. É minha maneira de ler. Seus poemas me ajudam a ressuscitar um pouco meu tio querido. Poderia esperar mais da poesia? O que mais um poeta poderia me dar?