Livro
Diário de Inverno
Paul Auster. Tradução de Paulo Henriques Britto. Companhia das Letras, 216 págs., R$ 44.
Nunca pensei em escrever uma autobiografia a ideia, sugerida recentemente por um leitor afetuoso, me soa inconveniente e absurda. Mas escrevi uma biografia, a de Vinicius de Moraes. Escrevi, também, dois breves ensaios biográficos, dedicados a João Cabral e a Rubem Braga. Quase nada sei a respeito de Cabral e de Braga. Espanto-me ao perceber que, apesar de todo o meu esforço, simplesmente desconheço Vinicius.
Agora leio Diário de inverno, segundo livro de memórias de Paul Auster (Companhia das Letras, tradução de Paulo Henriques Britto) e, já nas primeiras páginas, me volta a esperança de conhecer um pouco a respeito de um dos escritores que mais admiro. Apesar da narrativa envolvente, me sinto, a cada página, mais distante do escritor que procuro. Até que, na página 150, entrando no quarto final do livro, esbarro com uma desencorajadora reflexão de Auster a respeito da impossibilidade do autoconhecimento.
"Você não pode ver-se a si próprio", ele escreve. "Só sabe como é sua aparência por causa dos espelhos e das fotografias, mas enquanto você caminha pelo mundo (...), seu próprio rosto lhe é invisível". Você vê outras partes de seu corpo: braços, pernas, ombros, pés. "Mas não o rosto, jamais o rosto, e no final das contas pelo menos do ponto de vista das outras pessoas o rosto é quem você é e é o fato essencial da sua identidade". Aos 64 anos de idade Auster, hoje com 67 anos de idade, lançou o livro aos 65 , ele admite que não reconheceria seu próprio pé, ou sua orelha, ou seu cotovelo, quando isolados em uma fotografia. "Somos todos desconhecidos para nós mesmos, e se fazemos alguma ideia de quem somos, é apenas porque vivemos dentro dos olhos dos outros".
A hábil, embora desorientadora, reflexão de Auster desmancha e desarranja seu próprio livro. Como escrever as memórias de alguém que desconhecemos ainda (ou, sobretudo) se esse alguém somos nós mesmos? Os livros de memórias se erguem sobre a ilusão de que podemos capturar o tempo. Ordená-lo. Conferir-lhe, enfim, um sentido. Mas, constata Auster, "essa história de que antigamente é que era bom não é com você". Sempre que mergulha em fantasias saudosistas, constata, esbarra na angústia. "E logo chega à conclusão de que não há muita diferença entre os dois tempos, que presente e passado são essencialmente iguais".
Em algum canto do coração dos memorialistas há sempre a esperança de reconstruir um passado, senão glorioso, pelo menos honroso. Descobre Auster, porém, que não existe essa ruptura salvadora entre os dois tempos vivemos em um presente contínuo que, afora as variações circunstanciais, se desenrola no mesmo diapasão e na mesma direção.
Nascido em 1947, Paul Auster teve seu primeiro contato com a morte aos 10 anos de idade, quando um infarto fulminou sua avó. "Você, pessoalmente, não sentiu quase nada com essa morte. Não tinha nenhuma relação com sua avó, ela não lhe dava amor". Essa ausência de afetos, porém, não impediu que o menino Paul passasse a ver a morte como um raio.
Aos 14 anos, com a morte de um amigo, entendeu em definitivo "que o céu está cheio de raios que podem cair e matar os jovens tanto quanto os velhos, e que, sempre, sempre, o raio cai quando a gente menos espera". Esse aspecto imprevisto e espantoso da morte lhe confere o caráter de um desastre. Concede à existência, também, um aspecto assombrosamente indefeso. Mais uma vez: diante de algo que não se prevê, Auster está também diante daquilo que não se deixa escrever. Só depois (e algumas vezes) escrevemos a respeito da morte que passou. Ela, em si, é o inominável.
Talvez a ideia do inominável deva ser estendida, na verdade, para toda a vida. Se a morte é assim, o amor é exatamente igual. Como narrar algo que, por definição, é arredio a qualquer narrativa? Seus primeiros amores de rapaz, todos desastrosos, não passaram ele constata de invenções. Temos a ideia de que, ao rememorar um amor, narramos algo que nos aconteceu. Não é bem assim: narramos algo que inventamos. As primeiras moças que amou eram "concretizações fictícias dos seus próprios desejos". Embora nos amores maduros entrem em cena outros elementos, que vêm estabilizar a desordem dos sentimentos, esse aspecto fictício e arbitrário permanece. É por isso que se torna impossível explicar o amor. Ele não é o resultado de um projeto. É, de novo, um raio a que, ao cair sobre nós, em vez de fugir, nos agarramos.
Também a própria morte ou quase morte tem um laço coercitivo com o inesperado. Às vésperas dos 25 anos de idade, Auster quase morreu engasgado com uma espinha de peixe. Comia um file de halibute. A espinha aderiu ao fundo de sua garganta. Depois de muita luta, um médico conseguiu arrancá-la com uma pinça. "Isso aqui podia tranquilamente tê-lo matado". Quem poderia prever? Que coerência esse incidente guardava com sua história anterior? Como fisgar um sentido em algo que é desprovido de qualquer propósito?
Mas não apenas os fatos são incoerentes, a tentativa de resgatá-los através da memória também. Para escrever, Auster gosta de caminhar. "A escrita começa no corpo, é a música do corpo, e ainda que as palavras tenham sentido, ainda que possam às vezes ter sentido, a música das palavras é onde os sentidos começam". Os sentidos surgem antes de si mesmos, derivam de uma musicalidade, de uma experiência sensível que mobiliza o corpo.
Auster recorda a frase do poeta Mandelstam: "Eu me pergunto quantos pares de sandália Dante terá gasto enquanto escrevia a Divina Comédia". Conclui Auster: "A escrita como uma forma menor de dança". Onde não há sentido algum, onde o sentido é pura sensibilidade, ali as palavras surgem. Surgem e também se perdem. Gosta de recordar um sonho insistente, no qual, "num quarto escuro do outro lado da consciência", conversa com o pai morto. São longas conversas. Dizem coisas importantes. "Mas, depois que o sonho termina e você acorda não fica na sua memória uma única palavra que vocês disseram". No lugar das palavras, uma lacuna. Como acreditar nessas memórias que se erguem sobre um abismo?
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