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João Cabral de Melo Neto: arquitetura e sonho na poesia | Divulgação
João Cabral de Melo Neto: arquitetura e sonho na poesia| Foto: Divulgação

Durante a leitura de Imaginando João Cabral Imaginando, vigoroso ensaio de Cristina Henrique da Costa (Editora Unicamp), detenho-me em um tema muito importante para o poeta, mas pouco explorado por seus intérpretes: a relação inesperada entre poesia e sono. O sono não deve ser confundido com o sonho. Enquanto temos, em geral, o hábito de relatar os sonhos; enquanto o sonho é, pelo menos em parte, recuperável, o sono se passa em um território inexplorado e inacessível. Simplesmente desconhecemos seus conteúdos. Ele não se deixa pegar.

Em seu célebre, mas pouco lido, ensaio Considerações Sobre o Poeta Dormindo, Cabral nos adverte: "Diversas pessoas têm falado no sono como trampolim para o sonho, essa fuga efetiva do homem às dimensões comuns do seu mundo. Eu tentarei falar aqui do sono em suas relações com a poesia (relações secretas, porém não apenas: suspeitas), do sono como fonte do poema". O caminho de Cabral, portanto, é o contrário daquele que, por exemplo, levou às experiências surrealistas, nas quais o sonho — com seus automatismos e desfiladeiros de imagens — se tornava um modelo para a criação. A busca de Cabral, ao contrário, não é bem de uma lógica, mas de um "estado" no qual o poeta mergulha e no qual se põe a trabalhar.

"Contrariamente ao sonho, ao qual como que assistimos, o sono é uma aventura que não se conta, que não pode ser documentada", avança o poeta. "Da qual não se poderia trazer, porque deles não existe uma percepção, esses elementos, essas visões, que são como que a parte objetiva do sonho". O sono não tem objetividade — ele é puro apagamento. Para Cabral, o sono predispõe à poesia, sobretudo, pelo seu caráter de aventura — cita Murilo Mendes —, travessia de algo que não se pode descrever. Dialoga Cristina: "Mas é justamente a falta de objetividade que motiva o falar poético". Diz mais ainda: "Enquanto experiência, o sono dispensa qualquer demonstração, o sono provoca a experiência poética no sentido de exigir uma resposta". Não é só "dormindo" que o poeta se aproxima da poesia. Ele faz isso, sobretudo, quando tenta falar dessa experiência que para sempre lhe escapa. Pois a poesia é isso: a perseguição de alguma coisa que nos fugirá. Derrota antecipada que não desestimula, ao contrário estimula a escrita. O poeta não quer demonstrar tese alguma. Quer, apenas, perseguir.

Rememoro, aqui, uma experiência pessoal. No início dos anos 1990, gravei uma série de entrevistas com João Cabral — que resultaram em meu livro O Homem Sem Alma (Bertrand Brasil). Na sala de seu apartamento na Praia do Flamengo, as janelas estavam sempre fechadas, cobertas por espessas cortinas. Ali, em nossos encontros quinzenais, mergulhávamos em um ambiente de meia-luz que predispunha ao sono. O poeta, aliás, parecia cansado e distante. De fato, uma série de limitações físicas o afastava do mundo. Passava a maior parte do tempo sozinho, em casa, tentando suportar aquele estado de penumbra e de esgotamento, que predispunha (ou imitava) a um sono contínuo.

Além de tudo, Cabral começava a ficar cego — o que o condenava a uma observação difusa e insuficiente do mundo exterior. Com frequência o poeta pontuava nossas conversas com observações a respeito dessa atmosfera indefinida que — ele sabia — predispunha à poesia. Sono e poesia são estados vizinhos, como vasos comunicantes. Um alimenta o outro; um predispõe ao outro. Lembro, em particular, do dia em que ele se lamentou: "Você vê, tenho tudo para escrever, mas já não consigo escrever". A poesia estava ali — ela nos cercava — e, no entanto, a fragilidade física o impedia de exercitá-la. Volto a Cristina: "A própria necessidade de falar do sono prova a existência do estado poético, e a própria existência do sono dá fé à competência do estado poético, sobre o qual o poeta se debruça poeticamente, não podendo falar dele genericamente, senão através de metáforas da criação". A poesia é, assim, a história da passagem "da mudez à metáfora" — ligação direta, sem a intermediação do racional. Cabral tentava, desse modo, fazer do silêncio, poesia. Do sono profundo, versos. A intermediação aí não se dá pela inteligência, mas pelo afeto. É mais uma entrega, uma "intoxicação", do que uma maquinação.

Recordo que Cabral imaginava que poderia conter suas aflições com o uso de tranquilizantes. Vez por outra, me pedia para ajudá-lo a encontrar uma farmácia que vendesse tal medicamento antigo, mas eficaz, com o qual tentaria sincronizar com essa poesia em latência. "Os médicos insistem em dizer que estou deprimido", reclamava. "Mas o que tenho não é depressão, é melancolia. Sou como os poetas do século 19, carrego um buraco no peito". Esse rombo — sono profundo e inacessível — só podia ser combatido, ele pensava, com a ajuda dos tranquilizantes. Claro que jamais aceitei o papel de "médico" que ele me destinou. Sempre inventava uma desculpa qualquer para a ausência do medicamento — que, aliás, só poderia ser comprado com uma receita presa. Creio, porém, que a ausência do remédio era, no fundo, o que menos importava. O que importava? O meu reconhecimento de um rasgo — lugar por excelência da poesia — que ele, mesmo na velhice, continuava a ostentar.

Alerta-nos Cristina: "Não se entra no sono poético sem medo, assim como não se entra na poesia sem o amálgama dos sentimentos". Admite o próprio Cabral em seu ensaio sobre o sono: "Talvez eu deva novamente insistir nas dificuldades que existem em se falar de um assunto em que é tão considerável a parte do vago". E escreve mais: "No meu caso essa dificuldade se multiplica em impossibilidade. Impossibilidade de poder, por exemplo, penetrar no mistério de olhos abertos". É a própria impossibilidade, porém, que abre caminho para a experiência poética. É justamente porque não podia explicar, ou justificar, mas devia apenas aceitar, que Cabral se aproximou da poesia. Poesia que é, no fim das contas, território do inacessível. Ao qual só se chega através dos afetos e da entrega. Julio Cortázar dizia que é preciso assumir os sonhos para despertar. Para Cabral, ao contrário, só o sono profundo conduzia à escrita poética.

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