Conhecimento não é só acesso ao conhecimento. Sabedoria não é apenas o compartilhamento do saber alheio. Sem uma digestão interior, sem o ruminar do que descobrirmos e, sobretudo, sem a transformação do que se recebe (invenção), não se conhece, nem se sabe nada. A ilusão do acúmulo possibilitado pelo acesso fácil gerado pelas novas tecnologias leva muita gente a acreditar que o conhecimento é uma espécie de grande armário, no qual você coleciona peças da moda para, caso necessite, fazer uso delas. Que o conhecimento é algo que se acumula e se gasta. E que a sabedoria, em consequência, é o mesmo que o poder de saber.
Em Uma, Duas, Três Princesas, sua nova narrativa para crianças (Ática, ilustrações de Luani Guarnieri), a escritora Ana Maria Machado se encarregar de desfazer essas ilusões. As crianças de hoje crescem, desde muito cedo, com computadores e tablets nas mãos. Como num conto de fadas, em que a varinha de condão fosse substituída por um clique, basta um leve movimento de dedos e todo um mundo se abre magicamente. Mas, uma vez virada a página de luz, tudo fica para trás tudo se esfumaça. Desde cedo, crianças são levadas a acreditar que o saber é uma espécie de grande shopping, onde você veste uma roupa, depois outra, depois outra até, em grande parte das vezes, não ficar com nenhuma. Ou ficar com todas, o que dá no mesmo.
Na história de Ana Maria, contrariando a espera do príncipe herdeiro, um casal de reis tem três filhas, com olhos de azeitona (a mais velha), avelã (a do meio) e jabuticaba (a mais nova). Diante da inexistência do varão, os reis convocam o parlamento para decidir se uma menina poderá, no futuro, herdar o coroa. Os parlamentares aceitam, contanto que elas recebam a mesma educação que se daria a três rapazes. O rei presenteia as três filhas, então, com três computadores, onde elas passam freneticamente a navegar. A mais velha, contudo, não abandona seu amor pelos livros. A do meio se divide entre eles e a web, enquanto a mais nova entrega-se inteiramente às maravilhas da nova luz.
Um dia, vitimado por uma estranha praga, sua majestade cai doente. Nas histórias de fadas clássicas, os príncipes seriam convocados a viajar pelo mundo em busca de um elixir mágico que salvasse o pai. Descreve: "Coisas assim como: um manto de seda tão fino que pudesse passar dentro de um anel, um pássaro de ouro capaz de cantar e dançar, uma água perfumada que conseguisse iluminar a noite e outras coisas desse tipo". Mas o que fazer com três princesas que, frágeis, não poderão desafiar tais perigos?
Por ser uma leitora apaixonada de contos de fadas, a filha mais velha a dos olhos de azeitona sabe que, nos clássicos infantis, o príncipe mais velho sempre falha em sua missão. "Por isso, fez a mochila, entrou no carro e partiu. Pegou a estrada e sumiu", refém do suposto destino de derrotada. De muito longe, ainda passa um e-mail para os pais, dizendo que não encontrara nenhum caminho de salvação, e sugerindo que eles mandem em viagem a filha do meio.
Menos apegada às ideias e mais às coisas do coração, e seguindo sempre a norma dos clássicos, a filha do meio decide encontrar a salvação através da prática do bem. Ajuda uma velha a carregar seus gravetos, liberta um anão que tinha as barbas presas sob uma pedra, divide seu alimento com um faminto mas o encanto não é quebrado. Ainda se lembra de beijar um sapo, na esperança de que ele se transforme em um príncipe libertador, mas tudo o que pega é uma doença nos lábios. "O pior é que não apareceu nenhum rei dos pássaros nem das formigas nem coelhos nem dos carneiros nem de ninguém para vir ajudar".
Enquanto isso, a princesa mais nova agora a última esperança continua conectada à internet. "Nem precisava estudar, vinha tudo de mistura. E com um monte de figura". Leitora dos resumos das lendas clássicas que acessa na web, a menina começa a se atrapalhar. Avisa ao lobo mau para não se meter com uma vovó que vive na floresta; quebra o espelho mágico de uma velha horrorosa condenando-a à feiura eterna; troca o sapatinho de cristal de Cinderela pela bota do Gato de Botas. Seu saber rápido e superficial, em vez de ajudá-la a praticar o bem, a leva a praticar o mal.
Em grandes manchetes, os jornais do reino estampam: "As recentes trapalhadas da princesa em busca do fim do encantamento que caiu sobre nosso reino acabam sendo tão prejudiciais quanto o próprio feitiço em si". Iluminada pelas luzes sedutoras da internet, a jovem princesa "pensa que sabe uma porção de coisas, mas não sabe nada". Não tomou posse do saber, não o digeriu: não o fez seu. Lamentam os jornais: "Agora as consequências caem sobre todos nós".
Desesperados, os ministros do rei voltam a recorrer à princesa mais velha. Ela os aconselha a abandonar os saberes rápidos e as lições descartáveis, e a recorrer aos especialistas e suas lentas meditações. "Foi o que fizeram e deu certo". Em vez de deslizar sobre as luzes de um saber que só cintila, sem sentido ou direção, os sábios do reino optam pela sabedoria profunda dos estudiosos. O reino se salva. "O rei e a irmã do meio ficam bons". A caçula não abandona a internet, mas vai para a escola. E a filha mais velha, viveu feliz para sempre? "Quase. Mas ficou para sempre livre da obrigação de seguir tudo igualzinho a como já estava escrito". Aprende a pensar por si. Aprende a se voltar para dentro e pensar. Aprende a meditar.
Muitos e evidentes paralelos se podem traçar entre o belo conto de Ana Maria Machado e os tempos atuais. A narrativa de Ana Maria ensina às crianças que elas não devem temer pensar por si mesmas. Que não devem abandonar os estudos e os livros só porque técnicas luminosas se oferecem para pensar em seu lugar. Ensina que é possível aliar o avanço tecnológico ao verdadeiro conhecimento: que computadores, na verdade, se parecem muito mais com os antigos livros do que com mágicas varinhas de condão. Não há saber instantâneo. Não existem nem mesmo em um conto de fadas descobertas mágicas. O saber é algo que carregamos dentro de nós, e não um equipamento que possuímos. Só assim, vindo de dentro, ele pode nos unir em verdadeiras redes.
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